Andivari iluminou o solo com sua tocha procurando por pegadas. Olhou ao redor e fez sinal com as mãos para que os homens esperassem sua avaliação do terreno. O chão gramado dificultava o rastreio de pegadas naquela parte, mas um arbusto com um galho quebrado chamou sua atenção. Por aqui. - Sinalizou Andivari que foi seguido por Vladislav e os demais homens.
Aquela altura os homens já haviam parado de gritar o nome do perdido Adriel. A floresta ao redor era densa e escura fazendo todos se desencorajarem a gritar alto pelo nome do rapaz. Andivari achou o silêncio um tanto melhor pois facilitaria a percepção de algum barulho vindo da escuridão. Logo todos estavam caminhando próximos. Os que estavam mais afastados começaram a se reagrupar. Sinais de preocupação com a distância adentrada na floresta começava a ficar visível nos olhos da maioria. Todas as tochas próximas formavam uma bolha luminosa dentro da floresta, afastando possíveis predadores mas também indicando a localização de todos. Ciente da situação, Vladislav apagou sua tocha e afastou propositalmente do grupo. Com a espada riste em punho agora ele caminhava em silêncio absoluto. Com olhos atentos ao seu redor e aos homens adiante.
Algum tempo depois Andivari fez um sinal e todos pararam como se tivessem sido congelados. Andivari apontou para um aclive no terreno e no alto dele todos puderam ver uma pequena tenda montada ao lado de uma árvore. Junto a tenda havia um pequeno caldeirão suspenso em uma fogueira com algum ensopado ainda fervilhando em seu interior. Encostado na árvore estava o alaúde de Adriel.
Andivari pediu silêncio ao se aproximarem da tenda. Logo todos viram abismados uma linda jovem que envolvia o corpo de Adriel em um abraço intenso e apaixonado. Contudo a paixão partia da jovem. Pois Adriel parecia estar completamente rendido aos beijos da moça. Ela possuía cabelos dourados e uma pele branca que emitia um brilho próprio. As orelhas levemente pontudas eram adornadas com brincos brilhantes. Suas vestimentas quase não escondiam suas partes íntimas. Pareciam feitas de um tecido leve e fino que não parecia ser adequado ao ambiente frio. Apesar disso, a jovem não demonstrava nenhuma manifestação de sentir frio exceto por seus seios que despontavam com mamilos rijos para fora da sua vestimenta.
Antes que Andivari pudesse intervir, um dos homens deu um passo adiante esbravejando:
Adriel, seu filho de um cão. Estamos todos aqui preocupados contigo e você se engraçando com essa meretriz. Ao perceber a presença de todos a moça soltou Adriel e em um movimento rápido se colocou de pé afastando para trás com velocidade descomunal e se mesclando nas folhagens de um arbusto. Seus olhos brilhavam como duas velas acesas na escuridão. Por um momento todos puderam ver o olhar de desprezo da jovem até que ela desapareceu no arbusto.
O homem que gritou por Adriel logo se aproximou dele, mas ao tocar seu corpo e olhar para seu rosto o homem deu um sobressalto com terror nos olhos. _ Pelos deuses. O que aconteceu com você Adriel?
Logo todos puderam ver espantados a situação de Adriel. Apesar de possuir um sorriso de satisfação e alegria no rosto, Adriel havia envelhecido. Vários anos. Como se toda sua juventude tivesse sido sugada de sua vida. Ele estava vivo, mas seu corpo não tinha forças para se firmar. O cheiro horrível demonstrava que Adriel tinha defecado nas próprias vestes. Seus cabelos estavam ralos e esbranquiçados. Sua pele estava toda enrugada. Adriel estava quase irreconhecível.
Os homens começaram ficar apavorados ao perceberem a gravidade da situação.
Aquela jovem era uma maldição da floresta. Vamos correr. Ela pode voltar e nos amaldiçoar também.
Concordo que temos que sair daqui rapidamente. -Afirmou Andvari. _ Mas preciso que me ajudem a carregar Adriel.
Todos se entreolharam como se esperassem que alguém tomasse a iniciativa. Vendo que todos ao redor estavam com nojo do agora velho e sujo de excrementos Adriel, Andivari o ergueu sobre os ombros e disse aos homens:_ Fiquem atentos ao nosso redor e vamos sair daqui o mais rápido que pudermos.
O corpo do rapaz agora estava leve como uma pena. O cheiro de fezes incomodava a todos ao redor fazendo com que os homens ficassem a certa distância de Andivari que carregava Adriel sem demonstrar qualquer nojo. Andivari não culpava nenhum daqueles homens. A maioria eram fazendeiros ou comerciantes. Nenhum deles provavelmente havia participado de alguma batalha. Nas batalhas que Andivari havia lutado, o cheiro de fezes e sangue era o cheiro que impregnava o ar durante todo o tempo. Esse é o cheiro da morte. Sangue e fezes. Era triste pensar que o jovem Adriel, a algumas horas atrás estava cheio de vida e agora mal conseguia respirar. Toda a sua juventude havia sido roubada por uma criatura da floresta que apesar de bela, era mortal.
Um murmúrio entre os homens começou inevitavelmente. Todos apertavam os passos ansiosos para saírem daquele lugar. Andivari carregava o frágil corpo de Adriel nos braços. O jovem, agora velho, parecia dormir em um sono profundo. Uma baba escorria do canto de sua boca e melava o braço de Andivari. Mas para quem já havia se sujado com as próprias secreções do indivíduo em seus braços,aquela baba era a menor de suas preocupações. Na verdade, apesar de não admitir aos outros, Andivari também estava preocupado. O olhar da criatura ao ser surpreendida pelos homens não foi nada agradável.
Caminharam por alguns minutos e quando subiam uma pequena colina que outrora haviam descido todos se depararam com o vulto de um homem no alto da colina. Era um vulto esguio e alto. Provavelmente uns dois metros e meio de altura. Não dava pra ver o rosto mas todos sentiam um temor inexplicável que emanava daquele ser.
Todos pararam de imediato. Seguraram suas armas firmemente nas mãos. Foices, machados de lenhador e algumas lanças de pau. Apenas Vladislav e Andivari possuíam espadas de aço, mas Andivari estava segurando o velho Adriel nos braços. Um dos homens adiantou se do grupo com um pequeno facão em riste e bradou:
_ Quem és tú forasteiro? Que se interpõe entre nosso grupo e nosso caminho?
A resposta veio na forma de uma voz grave e metalizada. Falava um idioma estranho e não parecia se dirigir a nenhum dos homens ali presente..
Logo uma voz feminina respondeu da parte de trás do grupo. A uma distância de mais ou menos dez metros estava a criatura seminua que havia sugado a juventude de Adriel. Os dois seres conversavam entre si, ignorando completamente os amedrontados homens que estavam no meio do círculo iluminado por suas tochas. Os homens apegaram-se à luz como se ela fosse impedir que as duas criaturas pudessem adentrar o círculo.
Fiquem de costas um para o outro.-Ordenou Andivari. Formem um círculo e se mantenham atentos a qualquer movimento. Andivari procurou por Vladislav mas o jovem não estava no círculo. -Provavelmente se embrenhou na floresta para atacar o inimigo desprevenido. Espero que ele não cometa nenhuma tolice. Não sabemos o que estamos enfrentando.
À medida que o vulto humanoide se aproximava da luz suas feições se tornavam visíveis. Agora era nítido que apesar de esguio, o corpo possuía uma espécie de armadura negra com algumas gemas vermelhas e outras amarelas cravejadas por partes aleatórias. O rosto era um branco pálido e a textura da pele parecia a de um réptil. Não possuía nariz. Apenas uma leve elevação com possuía dois pequenos furos que poderiam ser suas narinas. Tal fato apenas destacava a boca desprovida de lábios que deixavam a mostra uma arcada dentária totalmente completa com dentes pontiagudos.
Tal visão espalhou o pânico entre os homens. Gritavam apavorados.
_Iévine salve nos. Nós te rogamos a ti deusa da vida.
Criaturas de Bël . Vamos fugir daqui.
Estão em menor número. Somos maioria. Vamos atacar homens.
Logo o sentimento de medo e ódio se espalhava pelo grupo. Alguns queriam atacar, outros fugir. Andivari colocou o corpo decrépito de Adriel no chão por um momento e com a espada firmemente empunhada ordenou aos homens.
Permaneçam em suas posições cães. -Andvari falava agora como um capitão de guerra. Sua voz ecoou firme no ouvido de todos e os homens pararam prontos a obedecer. Mas aqueles pobres homens não eram soldados. E a voz firme de Andivari inspirou coragem a um dos mais jovens que saiu do círculo em direção a criatura. Com uma foice em sua mão ele gritava disfarçando seu medo com ódio.
A criatura parecia se deleitar com a situação. Retirou do peito uma das pedras vermelhas que estava encravada na armadura e a jogou em direção ao jovem. A pedra de formato hexagonal acertou em cheio o peito do jovem e de alguma forma cravou queimando tecidos e adentrando na pele. O que se seguiu foi uma cena terrível. O jovem paralisou com o corpo trêmulo e riste. Sua foice caiu e ele ficou imóvel enquanto a criatura se aproximava de seu corpo. Olhava para o alto em direção ao rosto da criatura que se aproximava agora com um sorriso maléfico visível na face.
Com apenas os movimentos das mãos, a criatura parecia controlar o corpo do jovem. Todos viram atônitos. O jovem tremia. Seus olhos lacrimejavam sangue e sua boca espumava, mas ainda assim parecia não conseguir gritar.
A criatura fêmea que estava do outro lado correu como se fosse uma aranha rastejante e se pôs ao lado da criatura maior. Agora ela demonstrava suas verdadeiras feições. Apesar de ser menor, uma estatura de aproximadamente um metro e setenta, ela não tinha mais nenhuma semelhança humana. A pele branca e escamosa era agora visível. Os lábios outrora sedutores eram agora presas afiadas. E os seios da criatura em vez dos bicos rijos apresentavam algo semelhante a ventosas hediondas.
A criatura maior segurou o corpo do jovem pela nuca e sua luva, garras finas como agulhas adentraram a pele do jovem. Com uma lâmina afiada a criatura menor, que parecia ser a fêmea da espécie, começou a dilacerar o jovem que continuava imóvel, apenas tremendo de agonia. Ela arrancava lascas de pele do jovem e devorava lambendo as feridas com uma língua bifurcada. A criatura que segurava o jovem pela nuca parecia estar em êxtase. Suas garras apertavam o pescoço do jovem que tremia. As agulhas pareciam adentrar até a coluna vertebral do jovem que era dilacerado pela criatura fêmea de forma cirúrgica e ritualística.
Os homens estavam paralisados. Muitos literalmente se molhavam nas calças. Choravam e deixavam suas armas caírem.
Diante de tanta agonia sofrida pelo jovem, Andvari reuniu coragem para avançar. Mas percebendo sua atitude e com um olhar de desaprovação a criatura tirou da armadura outra pedra, uma amarela desta vez e a lançou no chão. Quase que imediatamente sua espada foi puxada de sua mão por uma força invisível e caiu em cima da pedra amarela. Logo as outras armas de metal se arrastaram até a pedra. Inclusive a espada de Vladislav que estava embrenhando na floresta passou sendo arrastada revelando o jovem guerreiro que acabou por soltar a espada quando ela o puxou para o campo de visão.
Agora a criatura voltou a sua atenção ao jovem. Sua companheira dançava enquanto dilacerava o jovem que já não possuía mais quase nenhuma parte do corpo coberta por pele. Com os olhos totalmente negros as criaturas pareciam regozijar. Começaram ambas a entoar um mantra, um canto macabro que paralisava todas ao redor.
_“Arkhanius orakna ssiamariusha moabatuza Arkhanius orakna”
Por fim, a criatura permitiu o jovem a gritar. Seu grito ecoou por toda a floresta. Gritos e gritos de desespero e dor. Alguns tentaram correr. Pediam e imploravam ajuda à deusa. Mas todos estavam imóveis. Não conseguiam se mover. Se sentiam abandonados. Alguns queriam adorar as criaturas. Juravam lealdade se fossem poupados. Amaldiçoaram os deuses e proclamaram as duas criaturas novos deuses.
Por fim a criatura fêmea abriu um corte no peito do jovem e enfiando a mão dentro arrancou o coração pulsante para fora e o mostrou ao jovem agoniado. Da mesma forma que não era permitido ao jovem se mover, também não era permitido ao seu corpo desmaiar ou morrer ainda. Seu cérebro processava todas aquelas imagens. A agonia era imensa. A criatura maior que o segurava pela nuca estava em um êxtase sexual. Por fim, o corpo do jovem não aguentou e a criatura voltou a si, deixando o corpo do jovem cair.
As criaturas falavam entre si. A fêmea possuía um tom maléfico e obsceno na voz. Agora com movimentos dançantes, olhou em direção a Vladislav com a língua sibilando. O jovem guerreiro entrou em pânico. Tentou correr em direção a espada mas não conseguia. Seus pés estavam paralisados. Vladislav estava com medo. Medo da morte. Ele sempre se imaginou enfrentando a morte em combate. Mas ele estava desarmado. Seria simplesmente abatido como um animal qualquer. E era isso que todos eram para aquelas criaturas da floresta. Animais esperando o abate.
Por fim, um som de cavalos a galope e homens gritando ecoou na floresta. A criatura recuou de Vladislav e falou algo a outra criatura que recolheu a pedra vermelha do corpo do jovem e a amarela do chão. A fêmea parecia querer ficar mas a outra criatura decidiu partir. Antes de seguir o macho, a criatura fêmea lançou um olhar de ódio para Vladislav.
Minutos após as duas criaturas sumirem na floresta, os soldados Águias Rubras chegaram. Junto a eles estavam o Príncipe Gamblior e Verbena. Os homens estavam em prantos. Alguns finalmente desmaiavam e outros gritavam aos soldados por ajuda. O príncipe e Verbena estavam assustados e confusos. Os soldados ao verem o corpo do jovem dilacerado no chão encheram- se de fúria e gritavam: _ Quem fez isso ao jovem? Onde estão? Para onde foram? Vamos caçá-los e trazê-los à fúria de nossas espadas.
_ Não. Pelos deuses. Não vão atrás deles. - Disse Andivari com a voz engasgada.
_Andi? - Exclamou o príncipe Gamblior. Pensei que o encontraria apenas nas festividades de Stavianath. O que aconteceu aqui? Aquele é o corpo do jovem desaparecido?
_ Não. O “jovem” é esse velho aqui no chão. Uma longa história. Mas ordene seus homens a se agruparem e ajudarem os cidadãos. Estão todos desesperados. E em hipótese alguma permita que seus homens sigam as criaturas.
Gamblior queria saber que criaturas eram essas. Estava confuso mas conhecia Andivari desde pequeno e sabia que aquele homem era um guerreiro prudente. Então deu ordem aos seus homens para ajudarem os cidadãos lamuriosos a retornarem ao acampamento.
Vladislav estava junto a Verbena que o abraçava. Ela olhou assustada para o velho no chão quando Vladislav disse algo a ela. Levou a mão à boca enquanto seus olhos lacrimejaram simultaneamente.
Andivari apanhou sua espada do chão e ficou a observando por um longo momento. Seus pensamentos eram incertos. Gamblior nunca o havia visto naquele estado antes.
Aos poucos os homens foram se acalmando e com a ajuda dos soldados Águias Rubras todos foram escoltados para o acampamento. Porém antes de chegarem decidiram enterrar o corpo do jovem morto. Nenhum familiar deveria ver o corpo do ente naquele estado. Concordaram em dizer aos familiares que foram dois ursos que os atacaram e que graças ao seu sacrifício eles conseguiram escapar. Alguns soldados acharam uma besteira mentir sobre isso, mas Gamblior ordenou o voto de silêncio de todos os soldados. Ao velho Malak foi dito que o filho caíra no covil de uma bruxa e sofrerá uma maldição irreversível. O velho estava indignado com a situação. Prometera gastar toda sua fortuna para que revertesse a maldição. Alguns diziam que o agora velho Adriel teve sorte pois poderia ter tido o pior destino.
_ Pelo menos ele não foi devorado por “ursos”. Zombou um dos soldados que logo levou uma bofetada. Quando o soldado se levantou para revidar viu que quem o esbofeteou foi o próprio capitão Gawdren.
_ Cale sua boca seu rato. Você não viu o estado de todos esses homens? Não viu como os encontramos assustados e chorosos? Até o próprio Andivari estava assustado. E acredite seu verme. Aquele homem não se assustaria facilmente. Seja lá o que for que tenha acontecido, agradeça aos deuses por não ter participado. E tenha mais respeito.
O soldado ficou em silêncio enquanto o capitão se dirigiu ao velho senhor.
_ Meu senhor, o que aconteceu ao seu filho foi uma fatalidade. Não creio que deva gastar sua fortuna com pessoas que provavelmente irão se aproveitar da situação em benefício próprio. Fique com seu filho o máximo que puder…
_ Ele era tão jovem. Tão cheio de vida. Ainda ontem ouvimos sua voz estridente ecoando pelas tendas -resmungava o velho Malak. Agora está tão velho. Mais velho do que eu. Por que deuses? Por que?
Os deuses talvez sejam imparciais. Existem maldades nesse planeta que desconhecemos. Mas apegue se a sua fé, meu velho senhor. Não há maldade grande o suficiente que não haja também bondade equivalente para se contrapor.
Enquanto os dois conversavam, o “velho” Adriel apenas observava com a vista embaçada pela idade. Em seus pensamentos a sua amada Verbena cuidava dele. Afagava seus cabelos e o acariciava em suas partes íntimas. Em seus pensamentos ele ainda era jovem e viril. Em algum lugar da sua mente ele sabia que aquilo era um sonho. Mas Adriel não queria acordar. A realidade era pra ele insuportável para ser vivida.