terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

O Mestre e o Discípulo

 Andivari puxou o arreio de sua montaria parando ao sopé da colina. Olhou para cima como se tentasse calcular o quanto ainda teria que cavalgar. No alto daquela colina ele tinha amigos. Talvez os poucos que ainda lhe restavam. Batendo levemente os calcanhares em sua montaria, Andvari recomeçou sua cavalgada em direção ao cume da colina. Havia tempos que não passava por aquelas bandas e quando recebeu uma carta de um velho companheiro de guerra relatando um estado de saúde crítico, ficou pesaroso pela notícia, mas, ao mesmo tempo, satisfeito em poder retornar a terra que outrora chamou de lar. Esteve ausente daquelas terras por muito tempo.

Tempo demais! - Pensava ele em seu íntimo. O rei, ao que parece, já não era tão atencioso com os homens do campo. As cidades muradas eram exorbitantes em riquezas e fortemente defendidas pelas tropas reais. Já o homem do campo sofria com o frio do inverno e os constantes ataques dos Kranows, homens selvagens que viviam nas florestas Delrey e por vezes, atravessam as cordilheiras dos Picos Gelados para atacar os camponeses que viviam aos pés das cordilheiras. Era intrigante para Andivari que o rei não se preocupasse com os camponeses. Pois era do trabalho intenso deles que provinha o alimento de todo o reino.

“_ São meros boatos Andivari. Não se preocupe com isso. A cordilheira além de ser fortemente vigiada por meus homens é uma muralha natural contra invasores. Os poucos caminhos que existem entre elas são vigiados pelos soldados reais.” - Dizia o rei enquanto se lambuzava com uma porção de frutas vermelhas. Andivari soube que aquilo não correspondia à verdade. Por muitas vezes os homens contratados para vigiar o sopé da cordilheira abandonaram seus postos para irem beber em alguma taverna próxima.

 Desviando seus pensamentos de coisas mórbidas, Andivari lembrou-se de um amigo que morava por aquelas paragens. Na verdade um garoto que Andivari ofereceu auxílio quando este se tornou órfão de forma trágica. “Será bom rever o jovem Vladislav. Espero que ele tenha superado seus traumas” - Pensava Andivari quase chegando ao alto da colina onde se encontrava uma pequena cabana de palha.

A cabana de palha era antiga, mas bem cuidada. Sua frente estava caprichosamente bem varrida e nos fundos havia uma pequena varanda onde ficava uma cadeira de balanço rudimentar. Mas adiante, no fundo do terreno, debaixo de uma grande árvore, havia uma dezena de bonecos de palha para o treinamento de tiro ao alvo e de esgrima. Ao lado sul da cabana ficava enormes pilhas de madeiras para a utilização em diversos ofícios da região. A mais comum era a utilização dos troncos em fornos das forjas dos ferreiros.

Andivari amarrou seu cavalo junto aos bonecos de palhas debaixo da espessa árvore e ficou debaixo da varanda ao fundo da casa esperando. O tempo estava nublado e logo uma forte chuva começou a cair. Andivari ouviu quando alguém chegou e entrou na cabana trancando a porta logo em seguida. Ao olhar pela janela viu que era Vladislav.

 O rapaz estava encorpado e agora parecia um soldado dos “Águias Rubras”, a guarda dos caminhos ocultos da cordilheira. Apesar de ainda manter o olhar tristonho de quem sofreu um grande trauma na vida, seus olhos já não eram amedrontados como outrora. Pelo contrário, tinha uma expressão firme em um olhar semicerrado que quase ocultava seus olhos verdes.



Andivari resolveu testar o jovem. Bateu à porta e se escondeu na parede ao lado da cabana. Logo um jovem loiro, com os cabelos longos ainda escorrendo por causa da chuva abriu a porta e olhou para os lados procurando encontrar alguém. Não encontrando ninguém, Vladislav retornou para dentro da cabana com o semblante transtornado. Incitado por um espírito brincalhão, Andivari repetiu esse trote por duas vezes, sempre se escondendo quando o já nervoso Vladislav atendia. Na terceira vez Vladislav já saíra praguejando. Armado com uma espada curta. Vladislav podia jurar que aquilo era obra dos garotos da fazenda ao lado. Mas já estava irritado. Quando viu um pedaço do pé de Andivari aparecer na lateral da cabana, percebeu uma parte da armadura e deu por si que não se tratava dos filhos do fazendeiro e sim de soldados. Soldados ou bandidos que poderiam querer sua morte.

Como um raio Vladislav pulou em direção ao indivíduo escondido atrás da parede da cabana. Contudo o indivíduo agarrou seu pulso e lançou seu corpo ao chão ao mesmo tempo que desvencilhou sua espada curta das mãos. Ao cair de cara no chão molhado, Vladislav estava com o orgulho mais ferido do que o corpo. Ergueu-se rapidamente e deparou com um homem alto de longos cabelos loiros e barba por fazer. Possuía uma espada montante nas costas, mas estava posicionado como quem se prepara para um duelo corpo a corpo. Sem pestanejar muito, jogou o corpo para cima do adversário que caiu ao chão. Os dois rolaram sobre a lama até que um golpe forte desequilibrou Vladislav e logo seu agressor o estava subjugando com uma chave de braço apertada em volta de seu pescoço.

_ Aceitas a tua derrota, meu jovem?  - Perguntou o seu agressor com um sorriso debochado.

_Mas qual cria de Bël, é você? E o que queres comigo? - Perguntou esbravejando Vladislav.

_ Calma rapaz. Não me reconheces? Sou um amigo. Queria apenas relembrar os bons dias de treino intenso nas artes marciais dos povos de Inrikuth. - Falou Andivari afrouxando o braço no pescoço de Vladislav. Quando Vladislav acalmou-se e olhou para o homem a quem havia enfrentado tão ferozmente alguns segundos atrás. Reconheceu por detrás daquele cabelo molhado e dourado os olhos verdes cinzentos de seu mestre de combates.

_Andivari? Quanto tempo…? Pensei que tu tinhas perecido na batalha de “areias profundas”.

_ Não, meu caro. Seria preciso mais do que uma horda de canibais para tirar-me de cena. Fato é que eu me afastei da vida de soldado. Pretendo agora desfrutar de meus ganhos e rever os amigos. Pude notar que ainda perpetras as artes de combate, mas está enferrujado meu caro. Pelo visto cheguei em boa hora. Agora levante se e me ofereças o aconchego de sua cabana para aquecer meus ossos. Esta chuva está deveras gélida como a morte.

Os dois amigos entraram na cabana e conversaram durante quase toda noite. Andivari percebeu que o pobre Vladislav ainda sofria com sua mania de perseguição. Sempre falava algo sobre a morte vir buscá-lo. O trauma de ter sido o único sobrevivente de sua família a sobreviver a um ataque bárbaro ainda o consumia. Mas foi bom ver que por fim, algumas vezes, Vladislav esboçava um sorriso.

Vamos dormir. Pela manhã visitaremos um antigo amigo que mora colina acima. Aroc é seu nome. Talvez você já tenha ouvido falar dele.

_Sim. Aroc, o ferreiro. Pai do falecido Gayo.

_ Gayo faleceu?. Perguntou Andivari com espanto.

Há três invernos atrás. - Falou Vladislav. Mais uma vítima dos ataques bárbaros dos homens sem lei da colina. Eu e alguns fazendeiros locais fomos socorrê-los, mas quando chegamos à fatalidade já havia ocorrido. O jovem Gayo morreu como um verdadeiro guerreiro. Defendendo sua família. Ele só tinha quinze anos. 

Uma tristeza começou a se abater sobre Vladislav. Foi quando Andivari ao notar sua melancolia disse:

-Durma meu amigo. Amanhã veremos o velho Aroc. Se bem me lembro, ele tinha uma linda filha… Como era mesmo o nome da garotinha? 

Verbena. - Completou Vladislav enquanto se ajeitava no saco de dormir perto da lareira e caia no sono.

Logo Andivari estava apenas ouvindo o crepitar vindo do fogo na lareira. Pensava intrigado. “_Por que Aroc me pediu para treinar um aspirante a cavaleiro se o seu filho está morto?”