segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Criaturas da Floresta

 Andivari iluminou o solo com sua tocha procurando por pegadas. Olhou ao redor e fez sinal com as mãos para que os homens esperassem sua avaliação do terreno. O chão gramado dificultava o rastreio de pegadas naquela parte, mas um arbusto com um galho quebrado chamou sua atenção. Por aqui. - Sinalizou Andivari que foi seguido por Vladislav e os demais homens. 

Aquela altura os homens já haviam parado de gritar o nome do perdido Adriel. A floresta ao redor era densa e escura fazendo todos se desencorajarem a gritar alto pelo nome do rapaz. Andivari achou o silêncio um tanto melhor pois facilitaria a percepção de algum barulho vindo da escuridão. Logo todos estavam caminhando próximos. Os que estavam mais afastados começaram a se reagrupar.  Sinais de preocupação  com a distância adentrada na floresta começava a ficar visível nos olhos da maioria. Todas as tochas próximas formavam uma bolha luminosa dentro da floresta, afastando possíveis predadores mas também indicando a localização de todos. Ciente da situação, Vladislav apagou sua tocha e afastou propositalmente do grupo. Com a espada riste em punho agora ele caminhava em silêncio absoluto. Com olhos atentos ao seu redor e aos homens adiante. 

Algum tempo depois Andivari fez um sinal e todos pararam como se tivessem sido congelados. Andivari apontou para um aclive no terreno e no alto dele todos puderam ver uma pequena tenda montada ao lado de uma árvore.  Junto a tenda havia um pequeno caldeirão suspenso em uma fogueira com algum ensopado ainda fervilhando em seu interior. Encostado na árvore estava o alaúde de Adriel. 

Andivari pediu silêncio ao se aproximarem da tenda. Logo todos viram abismados uma linda jovem que envolvia o corpo de Adriel em um abraço intenso e apaixonado. Contudo a paixão partia da jovem. Pois Adriel parecia estar completamente rendido aos beijos da moça. Ela possuía cabelos dourados e uma pele branca que emitia um brilho próprio. As orelhas levemente pontudas eram adornadas com brincos brilhantes. Suas vestimentas quase não escondiam suas partes íntimas. Pareciam feitas de um tecido leve e fino que não parecia ser adequado ao ambiente frio. Apesar disso, a jovem não demonstrava nenhuma manifestação de sentir frio exceto por seus seios que despontavam com mamilos rijos para fora da sua vestimenta.

Antes que Andivari pudesse intervir, um dos homens deu um passo adiante esbravejando:

Adriel, seu filho de um cão. Estamos todos aqui preocupados contigo e você se engraçando com essa meretriz. Ao perceber a presença de todos a moça soltou Adriel e em um movimento rápido se colocou de pé afastando para trás com velocidade descomunal e se mesclando nas folhagens de um arbusto. Seus olhos brilhavam como duas velas acesas na escuridão. Por um momento todos puderam ver o olhar de desprezo da jovem até que ela desapareceu no arbusto. 

O homem que gritou por Adriel logo se aproximou dele, mas ao tocar seu corpo e olhar para seu rosto o homem deu um sobressalto com terror nos olhos. _ Pelos deuses. O que aconteceu com você Adriel?

Logo todos puderam ver espantados a situação de Adriel. Apesar de possuir um sorriso de satisfação e alegria no rosto, Adriel havia envelhecido. Vários anos. Como se toda sua juventude tivesse sido sugada de sua vida. Ele estava vivo, mas seu corpo não tinha forças para se firmar. O cheiro horrível demonstrava que Adriel tinha defecado nas próprias vestes. Seus cabelos estavam ralos e esbranquiçados. Sua pele estava toda enrugada. Adriel estava quase irreconhecível.  

Os homens começaram ficar apavorados ao perceberem a gravidade da situação.

Aquela jovem era uma maldição da floresta. Vamos correr. Ela pode voltar e nos amaldiçoar também.

Concordo que temos que sair daqui rapidamente. -Afirmou Andvari. _ Mas preciso que me ajudem a carregar Adriel. 

Todos se entreolharam como se esperassem que alguém tomasse a iniciativa. Vendo que todos ao redor estavam com nojo do agora velho e sujo de excrementos Adriel, Andivari o ergueu sobre os ombros e disse aos homens:_ Fiquem atentos ao nosso redor e vamos sair daqui o mais rápido que pudermos.

 O corpo do rapaz agora estava leve como uma pena. O cheiro de fezes incomodava a todos ao redor fazendo com que os homens ficassem a certa distância de Andivari que carregava Adriel sem demonstrar qualquer nojo. Andivari não culpava nenhum daqueles homens. A maioria eram fazendeiros ou comerciantes. Nenhum deles provavelmente havia participado de alguma batalha. Nas batalhas que Andivari havia lutado, o cheiro de fezes e sangue era o cheiro que impregnava o ar durante todo o tempo. Esse é o cheiro da morte. Sangue e fezes. Era triste pensar que o jovem Adriel, a algumas horas atrás estava cheio de vida e agora mal conseguia respirar.  Toda a sua juventude havia sido roubada por uma criatura da floresta que apesar de bela, era mortal. 

Um murmúrio entre os homens começou inevitavelmente. Todos apertavam os passos ansiosos para saírem daquele lugar. Andivari carregava o frágil corpo de Adriel nos braços. O jovem, agora velho, parecia dormir em um sono profundo. Uma baba escorria do canto de sua boca e melava o braço de Andivari. Mas para quem já havia se sujado com as próprias secreções do indivíduo em seus braços,aquela baba era a menor de suas preocupações. Na verdade, apesar de não admitir aos outros, Andivari também estava preocupado. O olhar da criatura ao ser surpreendida pelos homens não foi nada agradável. 

Caminharam por alguns minutos e quando subiam uma pequena colina que outrora haviam descido todos se depararam com o vulto de um homem no alto da colina. Era um vulto esguio e alto. Provavelmente uns dois metros e meio de altura. Não dava pra ver o rosto mas todos sentiam um temor inexplicável  que emanava daquele ser.

Todos pararam de imediato. Seguraram suas armas firmemente nas mãos. Foices, machados de lenhador e algumas lanças de pau. Apenas Vladislav e Andivari possuíam espadas de aço, mas Andivari estava segurando o velho Adriel nos braços. Um dos homens adiantou se do grupo com um pequeno facão em riste e bradou:

_ Quem és tú forasteiro? Que se interpõe entre nosso grupo e nosso caminho?

A resposta veio na forma de uma voz grave e metalizada. Falava um idioma estranho e não parecia se dirigir a nenhum dos homens ali presente..

Logo uma voz feminina respondeu da parte de trás do grupo. A uma distância de mais ou menos dez metros estava a criatura seminua que havia sugado a juventude de Adriel. Os dois seres conversavam entre si, ignorando completamente os amedrontados homens que estavam no meio do círculo iluminado por suas tochas. Os homens apegaram-se à luz como se ela fosse impedir que as duas criaturas pudessem adentrar o círculo.  

Fiquem de costas um para o outro.-Ordenou Andivari. Formem um círculo e se mantenham atentos a qualquer movimento. Andivari procurou por Vladislav mas o jovem não estava no círculo. -Provavelmente se embrenhou na floresta para atacar o inimigo desprevenido. Espero que ele não cometa nenhuma tolice. Não sabemos o que estamos enfrentando.

À medida que o vulto humanoide se aproximava da luz suas feições se tornavam visíveis. Agora era nítido que apesar de esguio, o corpo possuía uma espécie de armadura negra com algumas gemas vermelhas e outras amarelas cravejadas por partes aleatórias. O rosto era um branco pálido e a textura da pele parecia a de um réptil. Não possuía nariz. Apenas uma leve elevação com possuía dois pequenos furos que poderiam ser suas narinas. Tal fato apenas destacava a boca desprovida de lábios que deixavam a mostra uma arcada dentária totalmente completa com dentes pontiagudos.

Tal visão espalhou o pânico entre os homens. Gritavam apavorados.

_Iévine salve nos. Nós te rogamos a ti deusa da vida. 

Criaturas de Bël . Vamos fugir daqui. 

Estão em menor número. Somos maioria. Vamos atacar homens. 

Logo o sentimento de medo e ódio se espalhava pelo grupo. Alguns queriam atacar, outros fugir. Andivari colocou o corpo decrépito de Adriel no chão por um momento e com a espada firmemente empunhada ordenou aos homens.

Permaneçam em suas posições cães. -Andvari falava agora como um capitão de guerra. Sua voz ecoou firme no ouvido de todos e os homens pararam prontos a obedecer. Mas aqueles pobres homens não eram soldados. E a voz firme de Andivari inspirou coragem a um dos mais jovens que saiu do círculo em direção a criatura. Com uma foice em sua mão ele gritava disfarçando seu medo com ódio.

A criatura parecia se deleitar com a situação. Retirou do peito uma das pedras vermelhas que estava encravada na armadura e a jogou em direção ao jovem. A pedra de formato hexagonal acertou em cheio o peito do jovem e de alguma forma cravou queimando tecidos e adentrando na pele. O que se seguiu foi uma cena terrível. O jovem paralisou com o corpo trêmulo e riste. Sua foice caiu e ele ficou imóvel enquanto a criatura se aproximava de seu corpo. Olhava para o alto em direção ao rosto da criatura que se aproximava agora com um sorriso maléfico visível na face.

Com apenas os movimentos das mãos, a criatura parecia controlar o corpo do jovem. Todos viram atônitos. O jovem tremia. Seus olhos lacrimejavam sangue e sua boca espumava, mas ainda assim parecia não conseguir gritar. 

 A criatura fêmea que estava do outro lado correu como se fosse uma aranha rastejante e se pôs ao lado da criatura maior. Agora ela demonstrava suas verdadeiras feições. Apesar de ser menor, uma estatura de aproximadamente um metro e setenta, ela não tinha mais nenhuma semelhança humana. A pele branca e escamosa era agora visível. Os lábios outrora sedutores eram agora presas afiadas. E os seios da criatura em vez dos bicos rijos apresentavam algo semelhante a ventosas hediondas. 

A criatura maior segurou o corpo do jovem pela nuca e sua luva, garras finas como agulhas adentraram a pele do jovem. Com uma lâmina afiada a criatura menor, que parecia ser a fêmea da espécie, começou a dilacerar o jovem que continuava imóvel, apenas tremendo de agonia. Ela arrancava lascas de pele do jovem e devorava lambendo as feridas com uma língua bifurcada. A criatura que segurava o jovem pela nuca parecia estar em êxtase. Suas garras apertavam o pescoço do jovem que tremia. As agulhas pareciam adentrar até a coluna vertebral do jovem que era dilacerado pela criatura fêmea de forma cirúrgica e ritualística. 

Os homens estavam paralisados. Muitos literalmente se molhavam nas calças. Choravam e deixavam suas armas caírem. 

Diante de tanta agonia sofrida pelo jovem, Andvari reuniu coragem para avançar. Mas percebendo sua atitude e com um olhar de desaprovação a criatura tirou da armadura outra pedra, uma amarela desta vez e a lançou no chão. Quase que imediatamente sua espada foi puxada de sua mão por uma força invisível e caiu em cima da pedra amarela. Logo as outras armas de metal se arrastaram até a pedra. Inclusive a espada de Vladislav que estava embrenhando na floresta passou sendo arrastada revelando o jovem guerreiro que acabou por soltar a espada quando ela o puxou para o campo de visão. 

Agora a criatura voltou a sua atenção ao jovem. Sua companheira dançava enquanto dilacerava o jovem que já não possuía mais quase nenhuma parte do corpo coberta por pele. Com os olhos totalmente negros as criaturas pareciam regozijar. Começaram ambas a entoar um mantra, um canto macabro que paralisava todas ao redor. 

_“Arkhanius orakna ssiamariusha moabatuza Arkhanius orakna”

Por fim, a criatura permitiu o jovem a gritar. Seu grito ecoou por toda a floresta. Gritos e gritos de desespero e dor. Alguns tentaram correr. Pediam e imploravam ajuda à deusa. Mas todos estavam imóveis. Não conseguiam se mover. Se sentiam abandonados. Alguns queriam adorar as criaturas. Juravam lealdade se fossem poupados. Amaldiçoaram os deuses e proclamaram as duas criaturas novos deuses. 

Por fim a criatura fêmea abriu um corte no peito do jovem e enfiando a mão dentro arrancou o coração pulsante para fora e o mostrou ao jovem agoniado. Da mesma forma que não era permitido ao jovem se mover, também não era permitido ao seu corpo desmaiar ou morrer ainda. Seu cérebro processava todas aquelas imagens. A agonia era imensa. A criatura maior que o segurava pela nuca estava em um êxtase sexual. Por fim, o corpo do jovem não aguentou e a criatura voltou a si, deixando o corpo do jovem cair. 


As criaturas falavam entre si. A fêmea possuía um tom maléfico e obsceno na voz. Agora com movimentos dançantes, olhou em direção a Vladislav com a língua sibilando. O jovem guerreiro entrou em pânico. Tentou correr em direção a espada mas não conseguia. Seus pés estavam paralisados. Vladislav estava com medo. Medo da morte. Ele sempre se imaginou enfrentando a morte em combate. Mas ele estava desarmado. Seria simplesmente abatido como um animal qualquer. E era isso que todos eram para aquelas criaturas da floresta. Animais esperando o abate.

Por fim, um som de cavalos a galope e homens gritando ecoou na floresta. A criatura recuou de Vladislav e falou algo a outra criatura que recolheu a pedra vermelha do corpo do jovem e a amarela do chão. A fêmea parecia querer ficar mas a outra criatura decidiu partir. Antes de seguir o macho, a criatura fêmea lançou um olhar de ódio para Vladislav. 

Minutos após as duas criaturas sumirem na floresta, os soldados Águias Rubras chegaram. Junto a eles estavam o Príncipe Gamblior e Verbena. Os homens estavam em prantos. Alguns finalmente desmaiavam e outros gritavam aos soldados por ajuda. O príncipe e Verbena estavam assustados e confusos. Os soldados ao verem o corpo do jovem dilacerado no chão encheram- se de fúria e gritavam: _ Quem fez isso ao jovem? Onde estão? Para onde foram? Vamos caçá-los e trazê-los à fúria de nossas espadas.

_ Não. Pelos deuses. Não vão atrás deles. - Disse Andivari com a voz engasgada. 

_Andi? - Exclamou o príncipe Gamblior. Pensei que o encontraria apenas nas festividades de Stavianath. O que aconteceu aqui? Aquele é o corpo do jovem desaparecido?

_ Não. O “jovem” é esse velho aqui no chão. Uma longa história. Mas ordene seus homens a se agruparem e ajudarem os cidadãos. Estão todos desesperados. E em hipótese alguma permita que seus homens sigam as criaturas.

Gamblior queria saber que criaturas eram essas. Estava confuso mas conhecia Andivari desde pequeno e sabia que aquele homem era um guerreiro prudente. Então deu ordem aos seus homens para ajudarem os cidadãos lamuriosos a retornarem ao acampamento.

Vladislav estava junto a Verbena que o abraçava. Ela olhou assustada para o velho no chão quando Vladislav disse algo a ela. Levou a mão à boca enquanto seus olhos lacrimejaram simultaneamente. 

Andivari apanhou sua espada do chão e ficou a observando por um longo momento. Seus pensamentos eram incertos. Gamblior nunca o havia visto naquele estado antes.

Aos poucos os homens foram se acalmando e com a ajuda dos soldados Águias Rubras todos foram escoltados para o acampamento. Porém antes de chegarem decidiram enterrar o corpo do jovem morto. Nenhum familiar deveria ver o corpo do ente naquele estado. Concordaram em dizer aos familiares que foram dois ursos que os atacaram e que graças ao seu sacrifício eles conseguiram escapar. Alguns soldados acharam uma besteira mentir sobre isso, mas Gamblior ordenou o voto de silêncio de todos os soldados. Ao velho Malak foi dito que o filho caíra no covil de uma bruxa e sofrerá uma maldição irreversível. O velho estava indignado com a situação. Prometera gastar toda sua fortuna para que revertesse a maldição. Alguns diziam que o agora velho Adriel teve sorte pois poderia ter tido o pior destino.

  _ Pelo menos ele não foi devorado por “ursos”. Zombou um dos soldados que logo levou uma bofetada. Quando o soldado se levantou para revidar viu que quem o esbofeteou foi o próprio capitão Gawdren.

_ Cale sua boca seu rato. Você não viu o estado de todos esses homens? Não viu como os encontramos assustados e chorosos? Até o próprio Andivari estava assustado. E acredite seu verme. Aquele homem não se assustaria facilmente. Seja lá o que for que tenha acontecido, agradeça aos deuses por não ter participado. E tenha mais respeito.

O soldado ficou em silêncio enquanto o capitão se dirigiu ao velho senhor. 

_ Meu senhor, o que aconteceu ao seu filho foi uma fatalidade. Não creio que deva gastar sua fortuna com pessoas que provavelmente irão se aproveitar da situação em benefício próprio. Fique com seu filho o máximo que puder…

_ Ele era tão jovem. Tão cheio de vida. Ainda ontem ouvimos sua voz estridente ecoando  pelas tendas  -resmungava o velho Malak. Agora está tão velho. Mais velho do que eu. Por que deuses? Por que?

Os deuses talvez sejam imparciais. Existem maldades nesse planeta que desconhecemos. Mas apegue se a sua fé, meu velho senhor. Não há maldade grande o suficiente que não haja também bondade equivalente para se contrapor.  

Enquanto os dois conversavam, o “velho” Adriel apenas observava com a vista embaçada pela idade. Em seus pensamentos a sua amada Verbena cuidava dele. Afagava seus cabelos e o acariciava em suas partes íntimas. Em seus pensamentos ele ainda era jovem e viril. Em algum lugar da sua mente ele sabia que aquilo era um sonho. Mas Adriel não queria acordar. A realidade era pra ele insuportável para ser vivida.  


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O príncipe destemido

     Gamblior estava inquieto em sua tenda real. Comeu as tortas de carne que uma jovem serva lhe trouxera apenas para se manter alimentado pois o seu apetite estava escasso. O dia estava agradável. A estrela Álax emprestou seus raios luminosos pela maior parte do dia. Quentes raios cortavam as nuvens tão raramente naquelas regiões.

Ao aproximar a escuridão da noite o acampamento inteiro parava. Homens buscavam lenha nas redondezas e logo vários pontos luminosos surgiram na estrada. Eram as fogueiras que ajudavam a aquecer e afastava os animais selvagens que caçavam à noite. A estrada era larga e uma fina grama queimada pelo frio cobria a maior parte do caminho. Ao redor, longos pinheiros enfileiram as bordas impedindo se enxergar muito além floresta adentro.

Gamblior costumava sair para beber e conversar com os capitães e soldados da escolta toda noite ao lado de uma fogueira. Atitude geralmente questionada pelos senhores e lordes que também viajavam na comitiva. Mas ninguém se opôs a sua atitude. Afinal, ele era o príncipe de todo reino de Hellins.

Quando o príncipe se aproximou todos os homens se levantaram e se prepararam para fazer uma reverência. 

_ Parem com isso. -Exclamou Gamblior. Hoje não quero nenhuma formalidade. Vamos apenas beber e falar besteiras. Afinal, quando eu for casado com Kathrina meus dias de beberrão terão se findado.

_Então você é homem que se deixa ser dominado por mulher meu jovem príncipe? -Disse um velho soldado que vestia a capa vermelha dos Águias Rubras já bem desgastado e uma barba grisalha que se emendava com seus cabelos longos. O tapa-olho ao lado direito do seu rosto lhe rendeu o apelido de “Ciclope”. Ao seu lado, Gandry “Pé de bigorna” servia uma caneca de cerveja para o jovem príncipe. Logo ambos sentaram ao lado de Gamblior e o entregaram a caneca de cerveja escura. A fogueira crepitava alta aquecendo todos. O príncipe estava feliz. Falava em como conhecera Kathrina e o quanto tinha certeza de que seria o escolhido por ela. 


_Já está tudo programado. Eu e Kathrina estamos nos correspondendo a dois anos. Ela está apaixonada por mim desde que a vi nas festividades de meu décimo quinto ano de nascimento. -Dizia com tom orgulhoso enquanto bebia longos goles de cerveja.

A noite começava a adentrar e quase todos bebiam e riam alto no acampamento. Os soldados de plantão se esforçaram para não cantarolar as músicas que o bardo tocava freneticamente em seu instrumento de cordas. Talvez por isso não perceberam quando a pequena Jasmine, filha mais nova de Malak, atravessou o cerco e pulou em direção ao príncipe Gamblior caindo em seu colo. Inicialmente todos olharam assustados, inclusive o príncipe. Alguns soldados até chegaram a erguerem suas lanças, mas quando o príncipe pegou a pequena criança nos braços e começou a girar cantarolando e rindo todos riram juntos. 

_ Que vergonha hein capitão. Fui pego por uma criança desarmada e a famosa guarda rubra nada pode fazer para deter  a minha pequena atacante. Todos riam com o príncipe. Todos menos o capitão Gawdren. Ele sabia que aquela tinha sido realmente uma falha e logo os soldados que estavam de plantão seriam punidos. Um duende da floresta poderia se passar facilmente por uma criança. Com a diferença que os duendes da floresta possuem presas venenosas e costumam morder suas vítimas. 

Contudo os soldados estavam embriagados com o vinho e a alegria do príncipe bêbado. Todos riram até que o príncipe de repente calou-se e pediu silêncio. Nos olhos da pequena Jasmine, lágrimas escorriam descontroladamente.

_O que te aflige minha pequena? Minhas canções e euforias te assustaram?

_ Não, “sinhô” príncipe. - Respondeu a pequena entre um soluço e outro. 

 – É meu irmão. A moça que estava ajudando na cozinha, aquela chata xingou ele e ele fugiu pra floresta. Isso foi de tarde e meu irmão não voltou mais.

 Meu papai está triste, mas o resto das pessoas não querem ajudar a procurar meu irmão.

 A garotinha narra o acontecido comovendo a maioria dos presentes com sua voz infantil e inocente.

_ Disseram que vão embora porque senão vão perder a festa do “sinhô”. Então, eu pensei comigo. Todo príncipe é bonito e tem bom coração, né? Bonito o “sinhô” é mas se o senhor tem um bom coração o senhor vai esperar eles procurarem meu irmão né? Por favor, meu “sinhô”.

Os soldados mais jovens se comoviam com seus olhares. Alguns enchiam o copo novamente com cerveja e vinho disfarçando um pigarro ou outro.

_ Não se preocupe minha pequena. Não só esperarei como também ajudarei a procurar seu irmão.

_Verdade?. O sinhô é bonito e de bom coração então. -Disse emocionada a pequena Jasmine enquanto beijava o rosto do príncipe.

_ Muito bem homens. Vamos procurar o irmão dessa garotinha. Bradou Gamblior levantando-se e colocando a jovem Jasmine no chão. -E preparem tochas. Quero uns vinte homens bons de rastreio na mata. 

Ciclope e Gandry levantaram e foram buscar espadas em suas barracas. Outros se voluntariaram à medida que muitos se levantavam e corriam em busca de seus equipamentos. 

O Capitão Gawdren não gostava da ideia do príncipe Gamblior adentrar a floresta ao redor à procura de um jovem perdido. Mesmo que ainda estivessem no início da jornada que adentrava a floresta Delrey que em seus primeiros quilômetros de mata era composta apenas por pinheiros e algumas árvores menores. Ainda assim, poderia ser uma aventura perigosa. Contudo ele sabia que quando o príncipe bebia ele jamais iria se dobrar a sua opinião. Ainda mais se tivesse sendo incentivado por soldados beberrões como “Pé de bigorna” e “Ciclope”. 

Logo, o príncipe e mais vinte soldados de armaduras cintilantes e longas capas vermelhas chegavam ao acampamento do velho Malak e seus filhos. Dentre os soldados estava o capitão Gawdren que olhava para todos os cantos com olhar desconfiado. Montada junto com o príncipe Gamblior vinha Jasmine, a pequena filha do velho Malak, que estava com um sorriso de satisfação.  Ao se aproximarem todos se curvaram em respeitosa cerimônia.

 


sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Coração partido

 Os três cavalgaram por, pelo menos, duas horas sozinhos até conseguirem acompanhar a grande caravana de viajantes, comerciantes e cavaleiros andantes que seguiam o séquito real. Logo os barulhos de pessoas conversando e carruagens sendo puxadas por cavalos e búfalos de carga tornaram-se constantes aos ouvidos. 

Verbena demonstrava certa tristeza no olhar. Principalmente quando olhava para trás e avistava as montanhas onde crescera e onde havia deixado seu pai. 


“_ Minha filha, vá com Andivari. Haverá uma grande festa em Stavianath e eu quero que você divirta-se. Não precisa passar sua mocidade cuidando de um velho moribundo. Meus dois aprendizes cuidarão bem de mim.“

E era verdade. Os aprendizes de Aroc já exerciam a profissão de ferreiro. Graças aos ensinamentos de Aroc eles sempre foram reconhecidos como excelentes ferreiros. Nunca deixaram de ser gratos a Aroc por seus ensinamentos e com os dias de Aroc findando, juraram cuidar do velho até que a morte lhe abraçasse. Sabiam que seriam dispensados assim que Verbena partisse, pois assim era o desejo de Aroc. Mas prometeram a Verbena permanecer por perto até o último suspiro do velho. Sim, todos sabiam que Aroc estava no fim. 

Ele é a única família que tenho agora. Não devia tê-lo deixado. –Pensava a jovem de cabelos dourados. 

Andivari observava a moça que escondia o corpo debaixo de um casaco de peles de urso. Seu rosto era rude e belo ao mesmo tempo. As sobrancelhas cerradas davam-lhe um aspecto raivoso, mas os lábios vermelhos e bochechas róseas junto com o olhar esmeralda davam-lhe fortes toques de feminilidade. Ela trazia a lâmina de seu pai junto à cintura presa por um cinto de couro. Atrás dela, com os cabelos loiros caindo até abaixo da nuca e a barba recém-feita, cavalgava Vladislav com o olhar perdido no horizonte.

_Dois sonhadores. –Pensava Andivari.

Ao entardecer, a caravana parou para descansarem e darem alimento aos viajantes. A guarda real do príncipe erguia uma parede de estacas para separar a comitiva do príncipe dos demais seguidores. Quem atravessasse a parede era severamente punido. Muitos viajantes ficaram olhando o príncipe e seus convidados que banqueteavam até tarde da noite na esperança de serem convidados para comerem junto com o príncipe. 

Algumas crianças gritavam o nome de Gamblior hora lhe pedindo alimento, hora lhe implorando para serem escudeiros de algum cavaleiro famoso que estivesse em sua companhia. Também havia mulheres que gritavam seu nome. Porém seus gritos era como gemidos de amor e por vezes acompanhados de palavras sedutoras e de cunho erótico. Algumas deixavam os seios amostra. O que alegrava os soldados de guarda na parede de estacas.

Apesar de alguns viajantes ficarem assistindo as festividades do príncipe Gamblior de longe, muitos preferiam fazerem suas próprias festividades e beberem até se sentirem como se fossem príncipes e reis. Princesas e rainhas. Andivari pagou algumas moedas de prata para um ancião de cabelos grisalhos e olhos fundos no rosto e puderam juntarem se a ele e seus filhos e filhas que banqueteavam um pernil assado acompanhado com cerveja vinda da longínqua Cananor. Um dos filhos do senhor era um aspirante a bardo, mas tocava tão mal o seu alaúde e possuía uma voz fanhosa que fazia de suas melodias um verdadeiro motivo de risadas de todos do grupo. Foi com esses companheiros de viagem que os três passaram a noite comendo e bebendo até que o sono chegasse. Apesar de existirem vigias das caravanas, Vladislav e Andivari combinaram as horas que ficariam a postos de guarda. No dia seguinte, Verbena indignou-se por ter sido deixada de fora da vigia e exigiu uma parte do turno para ela mesma manter-se de guarda.

Os dias transcorreram iguais. O ancião e seus familiares logo se afeiçoaram a Andvari e seus companheiros. Malak era seu nome. Havia criado uma pequena fortuna nas cidades de Hellins mas os constantes aumentos dos tributos o encorajaram a tentar a sorte em Stavianath. A viagem do príncipe era o momento perfeito para isso pois o caminho estaria sendo vigiado pela própria guarda real. Não só Malak como vários comerciantes estavam acompanhando o cortejo real. 

O filho “bardo” de Malak apaixonou-se por Verbena. Passava horas a fio tentando compor uma canção que agradasse a moça. Todavia a voz tediosa e os refrões nada criativos do rapaz apenas deixavam Verbena não só constrangida como enraivecida. O auge da ira de Verbena culminou quando ela estava preparando o desjejum em companhia das irmãs do rapaz e outras mulheres do grupo e o rapaz apareceu com seu alaúde cantando o seu amor em alto e bom tom. 

-Saia daqui! - Gritou Verbena lançando uma tigela na cabeça do rapaz. - Já estou cheia dessas músicas chorosas e sofríveis. Dane-se seu amor. Não o quero. Agora saia da minha frente.

O rapaz saiu assustado em direção oposta, cabisbaixo e envergonhado com todos ao seu redor rindo e debochando dele. Durante o restante do dia ninguém mais viu o rapaz dar as caras. Foi ao cair da noite que Malak, o pai do rapaz, manifestou sua preocupação 

_Já era pra ele ter voltado. -resmungava o velho. Ele nunca perde a refeição noturna. Estão todos aqui. Menos ele. E essas florestas ao redor são perigosas… 

Não se preocupe. Eu vou procurá-lo pessoalmente. -Disse Andivari levantando do chão onde estava jogando cartas com Vladislav em um salto. 

Eu também irei. Logo escurecerá e os olhos de Iévine não estão nos agraciando hoje. -Disse Vladislav se referindo às duas luas que em determinados períodos iluminavam os céus escuros. Uma possuía um brilho azulado e outra um brilho prateado, mas nessa noite nenhuma delas apareceria no céu escuro. 

_ Muito bem. Vamos reunir alguns homens para nos ajudar na busca. Verbena, prepare tochas para cada um de nós. Peça ajuda às outras moças.

Logo reuniram quinze bons homens dispostos a ajudarem. Andivari os dividiu em cinco grupos de três homens. 

Vamos procurar pela mata. Então lembrem- se de manterem as tochas acesas tanto para iluminar o caminho quanto para afastar possíveis predadores. 

Andivari distribuía as tochas que Verbena e as duas criadas trouxeram. O ambiente ficou iluminado por causa das tochas por algum tempo, mas à medida que os homens foram caminhando mata adentro e os grupos se distanciaram uns dos outros, o lugar voltou a ficar escuro e silencioso. 

As outras caravanas já estavam distantes, o que fazia o farfalhar das folhas junto com as lamúrias do velho Malak se tornarem assustadoramente auditivos. Verbena se sentia culpada pela situação. Mesmo que ninguém dissesse nada, ela sentia os olhares condenadores dos familiares do rapaz. Ao longe na floresta os gritos dos homens chamando o rapaz ecoavam. Foi só nesse momento que o nome fixou na mente de Verbena. " Adriel". O nome ecoava na floresta e na cabeça de Verbena. 


terça-feira, 3 de outubro de 2023

O Início de uma Jornada

 As trevas ainda dominavam o horizonte quando Andivari e Vladislav acordaram. Depois de um rápido desjejum, selaram os cavalos e tomaram rumo ao alto da colina. Subiam sem pressa, ainda meio sonolentos. Quando estavam no meio do caminho, surgiram os primeiros raios avermelhados de Álax, a estrela que ilumina Eralfa, trazendo o calor de um novo dia. O ar estava umidificado devido à chuva do dia anterior dando um prazer agradável a Andivari quando ele enchia os pulmões de ar. Atrás dele vinha Vladislav, com o olhar sombrio mesmo diante de um dia que prometia ser agradável. Andivari demonstrava ter certa preocupação com o amigo. “_ Já faz tantos anos…” - Pensava Andivari.” _ Qualquer homem já teria superado sua perda, seja ela qual fosse.”

 Alheio aos pensamentos de Andivari, Vladislav cavalgava em silêncio. Nem mesmo a luz do dia afastava dele seu semblante sombrio. " Tenho que tentar…” Pensava consigo. “_Se a morte anda sempre ao meu lado, devo buscar meus inimigos. Assim levarei a morte até eles”.

_ Alto lá… Quem são vocês? Uma voz feminina, mas potente cortou o ar tirando Vladislav de seu devaneio filosófico. A moça de aparência bela, mas rude, tinha em suas mãos uma espada recentemente afiada e sobre seu corpo um vestido feito de pele de carneiro cobria-lhe as curvas femininas.

Viemos ver Aroc, o ferreiro. - Disse Andivari observando a moça que acreditava ser a pequena garotinha que conhecera no passado.

Meu pai não exerce mais a profissão. Se desejarem os serviços completos de um bom ferreiro eu sugiro irem até a capital. Mas caso seja apenas um pequeno reparo, eu posso fazer por um preço justo, claro.

Na verdade, não estamos atrás dos serviços de um ferreiro. Eu vim a pedido do próprio Aroc. Você deve ser Verbena, estou correto? Sou Andivari e este comigo é Vladislav.

A moça olhou os dois homens com um olhar cético por alguns instantes e então disse:

_Sim, sou Verbena, filha de Aroc. Perdoem-me, mas somente agora reconheci o seu amigo. Ele mora colina abaixo, não é mesmo? Lembrei-me dele. Ele foi uns dos que vieram ajudar meu pai no último ataque que sofremos. - A tristeza pareceu abater sobre a moça por um momento. 

Na ocasião meu irmão faleceu, mas sou grata por todos que vieram nos socorrer.

Lamento por sua perda Verbena. Disse Andivari se compadecendo da jovem.

_ Pois eu tenho lamentado aqueles infelizes não aparecerem aqui de novo. Agora estou armada com a antiga espada de meu pai e tenho treinado todos os dias. Não sou mais a garotinha indefesa e em apuros que eles encontraram naquele dia.

A jovem possuía um ódio nas palavras e uma determinação nos movimentos que brandia com a espada. Ainda que desajeitados. Andivari começava agora a entender quem Aroc gostaria que ele treinasse.

Vamos garota, nos leve até seu pai. - Disse Andivari com um sorriso no rosto. _ Aroc terá muito que me explicar, a sim.

Álax, o luminoso astro que aquecia os dias, já estava no centro do céu quando eles chegaram à cabana no alto da colina. Era uma cabana antiga. Feita com grandes toras de carvalho e o teto coberto com placas de metal. Uma parte onde ficava a chaminé havia sido feita com pedras sobrepostas umas às outras. Quando encontraram Aroc, ele estava acamado. Com uma barba enorme que lhe caía até o umbigo. Seus olhos semicerrados estavam com marcas de cansaço e dor. Dois aprendizes tentaram ajudá-lo a se sentar na beira da cama. Andivari lamentou em seu íntimo ver o amigo naquela situação.

_Andi… vari, seu filho duma…cof… cof… ratazan…a …cof! Exclamou Aroc forçando a voz em meio a tosses e palavras. Quando Andivari percebeu que o velho se esforçava para se erguer, correu até a cama onde Aroc estava.

_ Não se esforce por minha causa cão de guerra. É muito bom revê-lo. Disse Andivari abraçando o amigo.

Cuidado com. Cof…cof…minhas costas filho. Já não sou mais o mesmo… cof…cof…! Anos de dedicação ao reino e eis minha recompensa. Tenho que dormir em minhas próprias fezes…

Só quando o seu orgulho fala mais alto pai. Resmungou Verbena.

_ Você não entende minha querida…cof …cof… Já não basta o tormento das dores, tenho que ficar vendo minha própria filhinha tendo…cof…que…cof…me limpar? A angústia estava estampada no olhar do velho. _ Prepare algo para nós comermos minha querida. Deixe-me falar com esse velho amigo por um momento. Verbena fez uma reverência aos três e saiu às pressas em direção à cozinha.

Ela é uma boa garota. Os deuses bem sabem. E quem é esse jovem? Cof..cof…

_ Esse é Vladislav, meu aprendiz.

_Que os deuses te guie no caminho da justiça meu jovem… cof…cof… pois estás com o melhor professor. Lembro-me de você… você esteve aqui quando…cof…cof…cof …Argh… Maldita tosse.

_ Não remexa no passado meu senhor… Nem sempre ele nos traz boas recordações. O que passou, deveras já é passado. - Disse Vladislav.

_Sim. Mas às vezes o passado nos atormenta. Acredito que estou pagando por todas as vidas que tirei no campo de batalha.

Lutamos por uma causa justa meu amigo. Não se condene pelos seus leais anos de serviço ao rei. - Disse Andivari.

_Iévine não é uma deusa adepta da justiça. Ela é a deusa da vida. Quando… cof…cof… Tiramos alguma vida ela afasta de nós seus…cof…cof…olhos. Deixando-nos à mercê da ira de Bël-Teâncum. Lamuriou o velho Aroc. Mas, deixemos de lado a conversa vã. Quero que você cuide da minha menina Andivari. Ensine ela a lutar. Cometi o erro de acreditar que…cof…somente os homens deviam se preparar para o combate, mas as pragas de Bël não escolhem suas vítimas pelo sexo. Leve-a contigo em tuas andanças. Eu em breve morrerei. Não quero minha… cof…cof…garotinha ao meu lado enquanto irei me definhar aos poucos. Ela sabe cozinhar bem…

_Mas, quem… - Andivari começou a pronunciar as palavras, mas parou quando viu o olhar desesperado e aflito do velho.

_Por favor, Andivari… Se eu pudesse recorrer a outro eu recorreria.

Tudo bem, meu amigo. Fez bem em me procurar. Só assim poderei retribuir as tantas vezes que salvou minha vida no campo de batalha. Estou mesmo indo até os festejos de Stavianath, na cerimônia de escolha do marido da princesa Kathrina e seria bom que Verbena viesse conosco. Vamos acompanhar a caravana do príncipe Gamblior.

_ Obrigado meu amigo. Muito obrigado. Verás que Verbena não é totalmente laica com a espada. Meu falecido filho costumava ensiná-la às escondidas. Graças aos deuses ele cof…cof…cof…era mais sábio que eu. Teimoso sim, porém sábio.

Naquela noite todos se alimentaram do guisado que Verbena fizera. Os dois dias que passaram foram cheios de histórias e momentos agradáveis. No dia da partida Verbena chorou ao se despedir do pai, mas estava contente, pois o pai tinha uma expressão feliz que há muito tempo ela não via. Em seu íntimo, ela sabia que o velho homem queria morrer sozinho seguindo sua antiga crença de que sozinho veio ao mundo e sozinho deveria partir. Assim um homem deveria morrer se um campo de batalha não tivesse tomado seu corpo durante a vida. 

Os três viajantes desciam a colina cavalgando três belos cavalos que os aprendizes de Aroc tinham trago. Lá embaixo podia se ver uma enorme cavalaria ao redor da carruagem real e mais atrás uma caravana enorme de viajantes e comerciantes que seguiam o séquito real.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

O Mestre e o Discípulo

 Andivari puxou o arreio de sua montaria parando ao sopé da colina. Olhou para cima como se tentasse calcular o quanto ainda teria que cavalgar. No alto daquela colina ele tinha amigos. Talvez os poucos que ainda lhe restavam. Batendo levemente os calcanhares em sua montaria, Andvari recomeçou sua cavalgada em direção ao cume da colina. Havia tempos que não passava por aquelas bandas e quando recebeu uma carta de um velho companheiro de guerra relatando um estado de saúde crítico, ficou pesaroso pela notícia, mas, ao mesmo tempo, satisfeito em poder retornar a terra que outrora chamou de lar. Esteve ausente daquelas terras por muito tempo.

Tempo demais! - Pensava ele em seu íntimo. O rei, ao que parece, já não era tão atencioso com os homens do campo. As cidades muradas eram exorbitantes em riquezas e fortemente defendidas pelas tropas reais. Já o homem do campo sofria com o frio do inverno e os constantes ataques dos Kranows, homens selvagens que viviam nas florestas Delrey e por vezes, atravessam as cordilheiras dos Picos Gelados para atacar os camponeses que viviam aos pés das cordilheiras. Era intrigante para Andivari que o rei não se preocupasse com os camponeses. Pois era do trabalho intenso deles que provinha o alimento de todo o reino.

“_ São meros boatos Andivari. Não se preocupe com isso. A cordilheira além de ser fortemente vigiada por meus homens é uma muralha natural contra invasores. Os poucos caminhos que existem entre elas são vigiados pelos soldados reais.” - Dizia o rei enquanto se lambuzava com uma porção de frutas vermelhas. Andivari soube que aquilo não correspondia à verdade. Por muitas vezes os homens contratados para vigiar o sopé da cordilheira abandonaram seus postos para irem beber em alguma taverna próxima.

 Desviando seus pensamentos de coisas mórbidas, Andivari lembrou-se de um amigo que morava por aquelas paragens. Na verdade um garoto que Andivari ofereceu auxílio quando este se tornou órfão de forma trágica. “Será bom rever o jovem Vladislav. Espero que ele tenha superado seus traumas” - Pensava Andivari quase chegando ao alto da colina onde se encontrava uma pequena cabana de palha.

A cabana de palha era antiga, mas bem cuidada. Sua frente estava caprichosamente bem varrida e nos fundos havia uma pequena varanda onde ficava uma cadeira de balanço rudimentar. Mas adiante, no fundo do terreno, debaixo de uma grande árvore, havia uma dezena de bonecos de palha para o treinamento de tiro ao alvo e de esgrima. Ao lado sul da cabana ficava enormes pilhas de madeiras para a utilização em diversos ofícios da região. A mais comum era a utilização dos troncos em fornos das forjas dos ferreiros.

Andivari amarrou seu cavalo junto aos bonecos de palhas debaixo da espessa árvore e ficou debaixo da varanda ao fundo da casa esperando. O tempo estava nublado e logo uma forte chuva começou a cair. Andivari ouviu quando alguém chegou e entrou na cabana trancando a porta logo em seguida. Ao olhar pela janela viu que era Vladislav.

 O rapaz estava encorpado e agora parecia um soldado dos “Águias Rubras”, a guarda dos caminhos ocultos da cordilheira. Apesar de ainda manter o olhar tristonho de quem sofreu um grande trauma na vida, seus olhos já não eram amedrontados como outrora. Pelo contrário, tinha uma expressão firme em um olhar semicerrado que quase ocultava seus olhos verdes.



Andivari resolveu testar o jovem. Bateu à porta e se escondeu na parede ao lado da cabana. Logo um jovem loiro, com os cabelos longos ainda escorrendo por causa da chuva abriu a porta e olhou para os lados procurando encontrar alguém. Não encontrando ninguém, Vladislav retornou para dentro da cabana com o semblante transtornado. Incitado por um espírito brincalhão, Andivari repetiu esse trote por duas vezes, sempre se escondendo quando o já nervoso Vladislav atendia. Na terceira vez Vladislav já saíra praguejando. Armado com uma espada curta. Vladislav podia jurar que aquilo era obra dos garotos da fazenda ao lado. Mas já estava irritado. Quando viu um pedaço do pé de Andivari aparecer na lateral da cabana, percebeu uma parte da armadura e deu por si que não se tratava dos filhos do fazendeiro e sim de soldados. Soldados ou bandidos que poderiam querer sua morte.

Como um raio Vladislav pulou em direção ao indivíduo escondido atrás da parede da cabana. Contudo o indivíduo agarrou seu pulso e lançou seu corpo ao chão ao mesmo tempo que desvencilhou sua espada curta das mãos. Ao cair de cara no chão molhado, Vladislav estava com o orgulho mais ferido do que o corpo. Ergueu-se rapidamente e deparou com um homem alto de longos cabelos loiros e barba por fazer. Possuía uma espada montante nas costas, mas estava posicionado como quem se prepara para um duelo corpo a corpo. Sem pestanejar muito, jogou o corpo para cima do adversário que caiu ao chão. Os dois rolaram sobre a lama até que um golpe forte desequilibrou Vladislav e logo seu agressor o estava subjugando com uma chave de braço apertada em volta de seu pescoço.

_ Aceitas a tua derrota, meu jovem?  - Perguntou o seu agressor com um sorriso debochado.

_Mas qual cria de Bël, é você? E o que queres comigo? - Perguntou esbravejando Vladislav.

_ Calma rapaz. Não me reconheces? Sou um amigo. Queria apenas relembrar os bons dias de treino intenso nas artes marciais dos povos de Inrikuth. - Falou Andivari afrouxando o braço no pescoço de Vladislav. Quando Vladislav acalmou-se e olhou para o homem a quem havia enfrentado tão ferozmente alguns segundos atrás. Reconheceu por detrás daquele cabelo molhado e dourado os olhos verdes cinzentos de seu mestre de combates.

_Andivari? Quanto tempo…? Pensei que tu tinhas perecido na batalha de “areias profundas”.

_ Não, meu caro. Seria preciso mais do que uma horda de canibais para tirar-me de cena. Fato é que eu me afastei da vida de soldado. Pretendo agora desfrutar de meus ganhos e rever os amigos. Pude notar que ainda perpetras as artes de combate, mas está enferrujado meu caro. Pelo visto cheguei em boa hora. Agora levante se e me ofereças o aconchego de sua cabana para aquecer meus ossos. Esta chuva está deveras gélida como a morte.

Os dois amigos entraram na cabana e conversaram durante quase toda noite. Andivari percebeu que o pobre Vladislav ainda sofria com sua mania de perseguição. Sempre falava algo sobre a morte vir buscá-lo. O trauma de ter sido o único sobrevivente de sua família a sobreviver a um ataque bárbaro ainda o consumia. Mas foi bom ver que por fim, algumas vezes, Vladislav esboçava um sorriso.

Vamos dormir. Pela manhã visitaremos um antigo amigo que mora colina acima. Aroc é seu nome. Talvez você já tenha ouvido falar dele.

_Sim. Aroc, o ferreiro. Pai do falecido Gayo.

_ Gayo faleceu?. Perguntou Andivari com espanto.

Há três invernos atrás. - Falou Vladislav. Mais uma vítima dos ataques bárbaros dos homens sem lei da colina. Eu e alguns fazendeiros locais fomos socorrê-los, mas quando chegamos à fatalidade já havia ocorrido. O jovem Gayo morreu como um verdadeiro guerreiro. Defendendo sua família. Ele só tinha quinze anos. 

Uma tristeza começou a se abater sobre Vladislav. Foi quando Andivari ao notar sua melancolia disse:

-Durma meu amigo. Amanhã veremos o velho Aroc. Se bem me lembro, ele tinha uma linda filha… Como era mesmo o nome da garotinha? 

Verbena. - Completou Vladislav enquanto se ajeitava no saco de dormir perto da lareira e caia no sono.

Logo Andivari estava apenas ouvindo o crepitar vindo do fogo na lareira. Pensava intrigado. “_Por que Aroc me pediu para treinar um aspirante a cavaleiro se o seu filho está morto?”