Por onde passava, o general Obadian Teron deixava sua marca. E sua marca era cruel. Famílias inteiras eram massacradas após servirem aos seus soldados. Mulheres eram estupradas e crianças mortas pelo simples fato de chorarem. Pelo menos foi o que disse o fazendeiro moribundo que encontraram na fazenda destruída. O fazendeiro logo faleceu pois suas feridas estavam além dos conhecimentos de Verbena para auxiliá-lo. Agora, o único comodo que não havia sido totalmente queimado servia dormitório para os três passarem a noite e cuidarem do ferimento de Andivari.
A cicatriz do rosto de Andivari se abriu e voltou a inflamar . Verbena passava muitas horas cuidando dele enquanto Vladislav vigiava o recinto. A ferida que deixara uma enorme cicatriz no lado esquerdo do rosto parecia não querer curar e nem mesmo os unguentos doados por Lecain pareciam surtir efeitos. Verbena estava preocupada pois já havia muito tempo que Andivari sofrera o golpe que o deixou com a cicatriz . Eles tentavam encontrar Lecain para inocentar o falecido príncipe Gamblior na época.
_Guntz ainda estava vivo. E até mesmo Gamblior. -Pensava Verbena.
A história a seguir se refere ao passado, quando Andivari, Verbena e Vladislav, com a ajuda de Guntz, tentavam encontrar Lecain para inocentar o príncipe Gamblior." meses atrás..."
Os quatro saíram cedo. Andivari, Vladislav, Verbena e Vesser Guntz, o novo guia que os levariam pelos caminhos ocultos da floresta. Com um jeito imaturo e brincalhão, Guntz logo conquistou a simpatia de Verbena e Andivari. Somente Vladislav teve uma relutância inicial de aceitá-lo. _Ele fala demais. –Resmungava Vladislav. _Ele é um mestiço Vladislav. Já sofre preconceitos demais por parte da maior parte da sociedade. –Repreendeu Verbena. _Não acha que seria melhor aceitarmos sua tagarelice como sinal de afabilidade?
O mestiço herdara as habilidades de seus antepassados élficos em rastrear na floresta. Via rastros onde ninguém mais via. Estava sempre cantarolando algo, mas quando encontrava um rastro, fazia sinal para todos ficarem em silencio. Sua fisionomia adquiria um aspecto sério que logo era quebrado quando ele concluía sua análise do terreno. Eles adentravam a mata em direção a floresta Delron na esperança de alcançarem Lecain. Quando Andivari decidiu ajudar o príncipe Gamblior, descobriu que o mago Lecain havia prevenido o rei de que a princesa Kathrina seria morta. Mesmo que Gamblior não estivesse no castelo quando a princesa foi assassinada, o rei não estava disposto a inocentar o príncipe. Principalmente porque havia uma testemunha de que Gamblior havia realmente matado a princesa Kathrina. Lecain era sua esperança de inocentar o príncipe. Pois se ele sabia que a princesa seria morta, provavelmente ele sabia quem a havia matado.
Lecain era um mago exótico. Alguns acreditavam que na verdade ele era praticante do conhecimento ágtis, pois ele não aparentava sofrer os males dos praticantes da magia. Certo era que dentre os dons de Lecain, estava a habilidade de vê o futuro e o passado. Pelo menos era o que diziam e por mais cético que Andivari fosse, Lecain era sua única esperança.
No segundo dia de caminhada, ao cair da quinta hora do período de Álax, Guntz se surpreendeu com um fato que havia passado despercebido pelos outros. _Já passamos por aqui.
_Como assim? Eu não me lembro disto. –Questionou Vladislav. _Está um pouco diferente de quando passamos pela última vez, mas é um fato. Nós já passamos por aqui. Veja esta marca no tronco desta árvore velha. Fui eu que fiz. Quando fiz essa marca a arvore ainda estava jovem e frondosa, mas tenho certeza que é a mesma árvore.
_Talvez Lecain não queira ser encontrado e esteja utilizando de magia para nos enganar. – Arriscou um palpite a jovem Verbena.
_Pode até ser verdade, Verbena. Mas não podemos desistir agora. Temos que encontrar Lecain custe o que custar. –Afirmou o convicto Andivari.
_Pode não ser Lecain. –Dizia Guntz. _Pode ser a própria floresta. Dizem que a floresta de Delron é uma floresta com fortes propriedades mágicas e que se ela se sentir ameaçada ela dá um jeito de atacar os viajantes fazendo eles se perderem e caírem em armadilhas criadas pela própria natureza. _Temos que prosseguir. Logo irá escurecer de novo e se tornar praticamente impossível perambular pela floresta no período de Erius.
Quando anoiteceu, como era de costume Andivari e Vladislav fizeram uma fogueira e Verbena preparou um coelho gordo que Guntz havia caçado com seu arco. O coelho foi preparado com batatas e condimentos que Verbena trazia em sua mochila de viagem. Logo o cheiro agradável que se espalhou pelo ambiente. Assim que Verbena começou a servir as tigelas, Guntz iniciou a vocalização de um estranho mantra. _O que está fazendo mestiço? –Questionou Vladislav. _Estou afastando os predadores de perto para podermos ter uma refeição em paz. _O único predador aqui sou eu. Se não comer logo eu irei ajudá-lo a degustar esse ensopado de coelho.
Todos pareciam bastante descontraídos. Até mesmo Vladislav parecia se divertir. Aquela foi a primeira noite na floresta que conseguiram dormir bem.
Ao amanhecer Andivari e Vladislav conversavam baixo enquanto Verbena e Guntz ainda dormiam. _Também percebi. –Respondia Vladislav a um comentário de Andivari.
_Esta noite não ouvi o barulho dos insetos como é de costume.
_Esta parte da floresta é bastante estranha. Observe que até mesmo agora não há tantos pássaros cantando como deveria haver. A floresta está em silêncio.
Quando todos acordaram e tomaram um rápido desjejum, prosseguiram o caminho. Guntz havia encontrado um rastro que levava a uma caverna conhecida nas proximidades. Era conhecida por ser morada de uma matilha de “lobos de fogo”.
Lobo de fogo era uma raça de lobos que existiam em Delron. Eles possuíam a pelagem vermelha, eram ferozes e a territorialidade era uma de suas características mais marcantes. Caso os rastros realmente levassem até a caverna, não seria fácil enfrentar os lobos.
Ao chegaram à entrada da caverna, Guntz percebeu que os lobos haviam passado em alta velocidade por aquele local. Como se tivessem fugido de algo. _Os lobos fugiram de algo que ainda pode estar dentro da caverna. –Concluiu Guntz depois de observar atento o chão ao seu redor e mais adiante. Logo adentravam a caverna. Andivari e Vladislav iam à frente com espadas e tochas em punho. Logo atrás vinha Verbena e o próprio Guntz. A entrada da caverna era imensa e a claridade aprofundava bastante após se aprofundarem chão adentro. Desceram por uma escada de pedra feita pela própria natureza até um chão que era coberto de areia. Andivari observou que havia sangue seco no solo. Logo adiante encontraram o primeiro lobo. Ele havia sido partido em dois. Seja lá o que for que fizera aquilo havia utilizado uma lâmina em brasas, pois o pelo ao redor do ferimento havia sido todo chamuscado no momento em que ocorrera o corte e um cheiro de carne queimada ainda impregnava o ar.
_Esperem! –Advertiu Guntz. _Estou ouvindo algo. Ninguém a não ser o próprio Guntz parecia ouvir alguma coisa, mas mesmo assim todos pararam. Já haviam aprofundado uns vinte metros caverna abaixo e encontraram dezenas de lobos mortos. Guntz insistia no barulho. _Vários estalos metálicos como se estivessem batendo lanças no chão de pedra. –Dizia ele. O grupo estava em um salão cavernoso que possuía dois corredores além do que eles haviam vindo. Logo todos começaram a ouvir o estranho barulho ritmado e cada vez mais próximo. Seja o que fosse, estava vindo em direção a eles. E vinha em grande velocidade.
À medida que aproximava, todos tinham uma ideia do tamanho de seja lá o que for. Guntz soltara a tocha no chão e se equipara com seu arco encaixando uma flecha na corda e flexionando ao máximo o arco. Apontava para a entrada dos corredores. Hora e um, hora em outro. E foi com um grito animalesco que a criatura surgiu. Com aproximadamente três metros de altura e uns cinco e meio de envergadura, uma criatura aracnídea com o corpo revestido por uma couraça metálica e olhos que emitiam uma forte luz amarelada saiu de uma das entradas de um corredor. O que se seguiu foi um combate violento de fúria e pânico misturado em uma hedionda dança macabra pela sobrevivência. Andivari e Vladislav golpeavam repetidas vezes as patas da criatura na esperança de conseguirem derrubá-la, mas tudo o que conseguiam era irritar a criatura. Quando as espadas se chocavam contra o corpo da criatura os golpes soltavam faíscas, mas sequer perfuravam a couraça metálica da criatura. Guntz pulou por baixo da criatura no momento em que esta iria acertá-lo com um golpe fatal com uma das patas pontiagudas. Saiu do outro lado, nas costas do monstro enfurecido e com agilidade sobre-humana subiu por seu tronco e disparou várias flechas que simplesmente ricocheteavam em sua carapaça metálica. A criatura girou enfurecida lançando Andivari e Vladislav longe. Verbena avançou com a espada em punho gritando um grito de fúria e medo misturado e mirando o golpe entre o corpo e a pata dianteira conseguiu ferir a criatura que caiu gritando ensurdecedoramente jogando Guntz longe no processo da queda.
Suas outras patas começaram a golpear desvairadamente quando um golpe veio em direção de Verbena cortando o ar. Em fração de segundos a promessa de Andivari ao pai de Verbena veio à tona em sua cabeça. Sem hesitação Andivari se jogou na frente do golpe parando a pancada com a espada. Infelizmente o golpe era violento demais e a pata afiada da criatura atingiu o rosto de Andivari deixando sua visão rubra. Verbena correu ao auxilio de Andivari que havia caído cego devido ao sangue que saía da ferida em seu rosto. Vladislav tentava encontrar uma brecha nos ataques eufóricos da criatura.
_Vamos sair daqui senão morreremos. –Gritou Vesser Guntz.
_Não será hoje que a morte me levará. –Bradou Vladslav atingindo um dos olhos da criatura que estranhamente explodiu lançando um clarão ofuscante por todo salão. A iluminação estava fraca, pois as tochas haviam caído no chão, mas ainda assim todos viram o vulto aproximando se. Logo, um velho de cavanhaque negro e pontudo, vestido com um manto marrom e um cinto de metal dourado na cintura, apareceu na entrada do salão cavernoso. Em sua mão trazia um medalhão que ele brandiu no alto de sua cabeça e o medalhão emitiu um estranho brilho seguido de um leve ruído que fez com que a criatura aracnídea emitisse um som semelhante a um assobio agudo e caísse nocauteada. _Posso saber o que vocês fazem aqui? –Perguntou o velho Lecain expressando uma face raivosa enquanto guardava o medalhão mágico em uma bolsa de couro vermelho que trazia ao lado da cintura.
_Buscamos por respostas. Respostas que acredito que o mago que tudo sabe poderá nos dizer. –Falou Andivari se erguendo com o auxilio de Verbena. _Se algum de vocês conhecerem alguém que a tudo sabe, por favor, me apresente. Com certeza deve ser alguém bastante singular. –Falou zombeteiramente Lecain. _Agora deixe me ver esta ferida. Não precisa ser nenhum sábio para saber que esse ferimento vai infeccionar se não for devidamente lavado e tratado.
_Queremos saber quem matou a princesa Kathrina. –Disse sem rodeios Andivari enquanto Lecain apalpava sua ferida. _O jovem príncipe Gamblior pode morrer caso não encontremos o verdadeiro culpado.
_E o que o faz crer que eu sei a resposta? E como tens tanta certeza da inocência do príncipe de Hellin-Odel?
_Foi você que disse que ela morreria. “_Aquele que trás a morte para dentro do reino é aquele que possui os cabelos de ouro...”, você disse. Com essas palavras você acabou por condenar a Gamblior. _Sim. Eu disse. Mas não disse que seria Gamblior a matá-la. Se minhas palavras fossem culpa-lo também teriam culpado a ti e ao seu amigo aqui. Disse dirigindo um olhar a Vladislav. _Ou até mesmo a jovem moça. –Olhou Verbena nos olhos enquanto passava um unguento na ferida de Andivari. _Afinal de contas todos vocês possuem os “cabelos de ouro”.
Andivari sabia que Lecain tinha razão. Na verdade se não fosse as acusações de Durkan contra Gamblior, todo forasteiro de cabelos dourados em Stavianath seria um suspeito. E isto teria incluído ele e seus companheiros na lista de suspeitos.
_Aquele que acusa o príncipe é que sabe quem matou Kathrina. Ele está vendado pela confusão, mas tão logo sua mente esteja esclarecida os olhos recobrarão a visão. Durkan estava cego de ciúmes e ódio de Gamblior. Seria razoável se seus olhos vissem o seu inimigo pessoal no lugar do assassino de Kathrina.
_Pode ser que o velho tenha razão. –Comentou Guntz.
_Você precisa vir conosco Lecain. Tens de convencer o rei Cronder de que Gamblior pode ser inocente. –Falava Andivari ainda aflito pela dor em seu rosto.
_Você não pode viajar com esse rosto assim meu jovem. Descansem pelo menos uns dois dias. _Ficar aqui com essa criatura? –Perguntou o assombrado Guntz dirigindo um olhar apavorado para a criatura imóvel no solo. _Jamais. –Afirmou enfim.
_A criatura está sob meu domínio agora. –Dizia Lecain. _ E lamento, mas não posso abandonar meus processos mágicos agora. Já basta a interrupção que vocês me causaram. Fiquem com esses unguentos para tratarem das feridas. No final desse corredor existem alguns cobertores de peles e uma lareira. Fique o tempo que precisarem, mas não me incomodem mais.
Dizendo isso, Lecain seguiu o outro corredor. Em um estrondoso salto a criatura se ergueu e seguiu Lecain. Andivari queria segui-lo e questioná-lo, mas sabia que precisava retornar antes do julgamento de Gamblior. Sentia-se culpado por ter feito a viagem e não ter conseguido convencer Lecain de retornar com ele.
De uma janela mágica Lecain viu quando os viajantes saíram da caverna em direção ao reino de Stavianath.
_Meus planos não poderiam ter saído melhores. –Pensava Lecain. _Ao que me parece terei de fazer uma ultima visita ao prisioneiro.
"de volta ao presente..."
Andivari queimava de febre. Verbena acariciava seus cabelos enquanto passava um pano úmido em cima de sua cicatriz inflamada. A cicatriz assumira um aspecto horrível. _Ele perderá a visão do olho esquerdo, como certeza. -Concluía em seus pensamentos.
Os dois estavam próximos a uma lareira. As paredes ao redor ainda possuía o cheiro e o aspecto escuro do recente incêndio que destruiu a maior parte dos cômodos da casa.