Keiran
Dehildren acordou cedo naquela manhã nublada. Uma fina chuva caía lá fora. Ao
olhar pela janela da torre podia ver uma imensidão de telhados molhados pela
chuva. Algumas copas de imensas árvores às vezes sobressaíam entre os telhados.
Naquela parte do reino não se via as casas construídas
com entalhes de madeira maciça sobreposta e cobertas com vegetação como era
comum de se ver no subúrbio de Anarkden. Lavou o rosto em um recipiente de prata
contendo água morna e em seguida vestiu seu gibão roxo e sua capa de veludo negro.
Olhou para cama e ao ver Isilda se contorcer entre os lençóis de seda sentiu
uma imensa vontade de despir-se novamente e se aconchegar entre as pernas dela.
Lutando contra a tentação, saiu em silêncio fechando a porta e desceu as
escadas em direção ao salão principal sem sequer dar atenção aos dois guardas
que estavam parados ao lado da porta.
O
salão principal era amplo e de paredes circunflexas, iluminado por tochas em
vários cantos. Diante de uma imensa mesa de carvalho maciço encontrava se o general
Obadian Teron onipotente com sua armadura negra e seu manto vermelho sangue.
Apesar da idade, Teron se erguia com vigor juvenil. O peso de sua armadura
completa não parecia incomodá-lo. Sua calvície salpicada por alguns fios de
cabelos amarelos dava lhe um aspecto amargurado e severo. Diziam que outrora
seus cabelos tinham sido vermelhos e volumosos. Mas aquela havia sido outra
época.
_Vossa
Alteza.
_Vamos
logo dar cabo desse assunto general. Não quero que minha esposa acorde e queira
vir conosco.
_Como
quiser Vossa Alteza.
_Onde
está o comandante Sinclery? Ele não virá conosco?
_Não
senhor. Ele não poderá vir conosco. O marquês Éber relatou que uma de suas
fazendas havia sido saqueada e seus servos haviam sido mortos. Enviei o próprio
Sinclery para cuidar desse assunto e trazer os culpados à justiça. –Explicava
Obadian enquanto caminhavam para o pátio.
_Fez
bem general, fez bem. O marquês Éber é um homem honesto e honrado. Temos que
mostrar que cuidamos de nossos bons cidadãos.
O
pátio do castelo possuía uma extensão de calcário cinza que o cruzava da porta
do palácio até ao portão de ferro que dava acesso a avenida principal de
Anarkden. Ao redor, de ambos os lados, plantas exóticas criavam formas e
desenhos coloridos em um belo jardim. As plantas exibiam suas cores vivas como
nunca. Pareciam agradecidas pelas gotículas de água do chuvisco que caia
teimosamente naquele dia.
Quando
chegaram à rua, uma carruagem pintada de vermelha, com madeira envernizada e
com o símbolo real de Keiran entalhado na porta estava aguardando. Quatro
cavalos negros estavam incumbidos de puxar a carruagem. Duas lanças de soldados
cuidavam da proteção do rei. Uma na frente com dez homens montados e uma atrás
com nove homens. O general Teron ia junto ao rei dentro da carruagem. Logo a
carruagem estava em movimento. Seria uma longa viagem e o guia estimava que
eles chegassem à oitava hora do período de Álax. O céu provavelmente estaria escuro.
Dentro da carruagem um harpista cantarolava
enquanto dedilhava uma canção calma em sua harpa dourada. O rei parecia não ter
interesse pela música e isto deixou o harpista com uma cara besta e um sorriso
sem graça na face. Seu nome era Devany Aileeny, e era conhecida como “Devany voz das harpas”. O general Teron estava achando a música tediosa e imprópria, pois a letra falava um casal
apaixonado em uma tarde iluminada, mas, como o rei parecia não se importar com
a canção, permaneceu calado.
Horas
mais tarde, quando a carruagem já atravessava a estrada da mata, o rei Keiran
quis saber:
_Explique-me general, –Falou Keiran enquanto a carruagem seguia seu caminho. Como isto
tudo ocorreu. O que realmente aconteceu aos Hildebrans?
_Meu
senhor, tudo aconteceu muito rápido. Como os Stavianathos eram nossos aliados,
não vimos necessidade de manter homens armados para cuidarem do corte das
árvores. Foi quando um sobrevivente, o filho mais jovem dos Hildebrans veio até
nós. O pequeno jovem nos relatou o massacre que sua família havia sofrido. Suas
irmãs ainda estavam sendo estupradas quando ele fugiu. Infelizmente ele possuía
uma ferida no abdômen e veio a falecer assim que nos relatou o ocorrido. O seu
ultimo desejo foi que sua família fosse vingada. Desejo que eu e meus homens
prontamente nos propusemos a realizar.
_É
realmente uma triste história, entretanto uma história difícil de acreditar.
Não vejo motivos para os Stavianathos nos atacarem... Talvez o garoto tenha
confundido os....
Abruptamente
o rei foi interrompido por um estrondoso rugido de várias vociferações ferozes
que ecoaram por toda floresta. Os soldados lutavam para controlar os cavalos
que escoiceavam em pânico. Dentro da carruagem O rei estava atônito. O harpista
havia deixado seu instrumento cair e estava branco como neve. Tremia e
choramingava feito uma criança. Pela força do hábito, Obadian Teron levou sua
mão até o cabo da espada, mas, seus olhos estavam arregalados.
_Que
maldição foi essa? _ Quis saber o rei tentando falar sem tremor na voz
embargada.
O general Teron sacou a espada e olhou de relance através da cortina da janela
da carruagem. O rei olhou pela outra janela e viu seus soldados se reunindo ao
redor da carruagem com certa dificuldade para controlar seus cavalos. Olhou
mais adiante, para a floresta e viu algo aterrador. Olhos. Olhos amarelos e
raivosos na floresta. Logo o arbusto começou a se mexer e os olhos apareceram
em um rosto com focinho negro e uma enorme boca com mandíbulas denteadas e uma
juba negra por trás desta face aterrorizante. Um corpo forte e grande se
revelou. Possuía uma fina pelagem variando do vermelho amarelado ao marrom
escuro e aproximadamente dois metros e dez de altura. O rosto macabro pareceu
sorrir e um rugido se sobressaiu dentre os outros. A criatura avançou
velozmente, munida de apenas um tacape de madeira nas mãos e logo uma dezena de
criaturas semelhantes a seguiam.
O
rei Keiran caiu para traz apavorado. O que se seguiu foi uma onda de gritarias,
rugidos e relincho de cavalos apavorados. A carruagem balançava a cada pancada
que recebia de corpos sendo jogados e despedaçados. Correu para frente da
carruagem para ver porque esta não se movia e viu que os cavalos tiveram suas
pernas arrancadas. O cocheiro estava caído entre eles sem a cabeça. Viu um
soldado galopar para longe esperançoso, mas o mesmo foi derrubado de sua montaria
por uma criatura que caíra sobre ele surgindo do alto de uma arvore. Até mesmo
a montaria foi abatida por um tiro de flecha certeiro saído de um arco rustico
que a criatura utilizou enquanto ainda enforcava o dono da montaria com uma
cauda forte de ponta peluda. Em seguida a criatura arrancou o rosto do soldado
com uma mordida que estraçalhou os ossos da face deixando uma pasta vermelha
escorrer pela cabeça junto com um olho que a criatura logo pegou e mastigou
como se fosse uma ameixa.
As
pernas de Keiran vacilaram e ele desmontou-se no chão da carruagem. A gritaria
durou cerca de cinco minutos. Mas tarde restavam apenas alguns gemidos. O
harpista gritara desesperadamente no inicio, mas agora se limitava a chorar
copiosamente.
Logo
ouviram passos se aproximando da carruagem.
_“toc,
toc ,toc.” -Imitou o bater na porta da carruagem uma voz gutural e de
entonação sarcástica. _Venham jantar
conosco. Vamos, saiam. Ou preferem que nós entremos?
_SantaIévine
SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine.....
– repetia sem para o harpista que se encontrava encostado na parede dos fundos
da carruagem.
Um
par de braços fortes e com mãos com garras negras e brilhantes atravessaram a
parede e agarraram o harpista pela cintura e o puxou através da parede de
madeira que se quebrou como se fosse gravetos. Os gritos do harpista se
tornaram novamente desesperados.
_Teron
se ergueu e saiu da carruagem.
_Aonde
você vai? –Perguntou o rei. _Volte. Eles vão devorá-lo.
O
rei Keiran se recolheu no chão da carruagem. Sua mente procurava por sua
coragem, por sua bravura, mas não encontrava. Estava imobilizado de pavor.
_Então
temos um acordo? Perguntou a voz gutural.
_Sim.
–respondeu Teron.
_Bom.
Muito bom. Devoraremos os homens e os
cavalos e ficaremos com as armas de ferro. Da mesma forma que fizemos com os
outros, mas pouparemos o seu rei.
O
rei Keiran que estava até então ouvindo a conversa teve coragem para sair da
carruagem ao ouvir que seria poupado. Desceu os degraus da carruagem, trêmulo e
quase voltou para dentro quando viu os soldados sendo devorados por um bando de
criaturas que lembravam os silberianos dos quais havia ouvido falar no passado.
_O
que está acontecendo Teron? Conhece esses... esses... silberianos?
_O
seu rei nos ofende humano. –rugiu a criatura que estava diante do general Teron. A criatura segurava o harpista pelo braço e quando olhou para o rei
Keiran arrancou o braço do harpista e começou a morder e chupá-lo os ossos como
se fosse coxa assada de alguma ave.
_Não
somos silberianos humano tolo. Não somos fracos. Somos Silbetherons, ou
silberons, como os ignorantes costumam dizer.
_Não
importa o que sejam. –Falou o rei aflito ao ver o harpista desfalecer no chão.
_Apenas me poupem como você havia dito.
_Humano
tolo. Eu disse que vamos poupa-lo, sim. Mas pouparemos seu corpo. Não sua vida.
Com
um golpe rápido a criatura enfiou as garras no peito de Keiran.
Keiran
ainda teve tempo de ver o próprio coração pulsar na mão da criatura antes de
cair sem vida.
Obadian
Teron apenas desviou o olhar quando o sangue transbordou do peito vermelho do
rei caído.
_Leve
o seu cadáver de rei aonde quiser. E ponha a culpa em quem quiser. -Dizia a
criatura enquanto acabava de mastigar o braço do harpista. _Mas não se esqueça
de tua palavra humano. Iremos exigir trinta jovens humanos, toda vez que os
olhos da deusa Iévine estiverem sobre vocês, como vocês costumam dizer. Mas
sugiro que em vez de Iévine, quando olharem pro céu e virem as duas luas
juntas, lembrem-se de meus olhos e de nosso trato. Nós preferimos a carne de fêmeas,
mas esteja à vontade para escolherem seus filhotes. Apenas entreguem no local
combinado, senão irei pessoalmente devorar você, sua família e todo seu povo.
Obadian
Teron recolheu o corpo do rei e começou a caminhar o percurso que retornava a
Anarkden. A jornada seria longa e cansativa. E Obadian Teron tinha uma história
para contar.