Enquanto
Gamblior era arrastado pelos dois guardas de faces severas e armaduras de metal
polido que refletiam o brilho de Álax em seus olhos naquela manhã clara,
tentava em vão caminhar ereto, com a força de seus próprios pés. Contudo a
força de seu corpo já o havia deixado há dias. Andivari e os seus companheiros
não regressaram com as provas de sua inocência.
_Amável
Andivari, eu sei que tinha boas intenções, mas para esse povo, eu já fui
condenado mesmo antes de ser julgado. _Pensava Gamblior enquanto era arrastado
até a praça onde seria julgado. Enquanto era arrastado pelas ruas pavimentadas
com blocos de pedras acinzentadas pensava no estranho visitante que recebera em
sua cela duas noites atrás.
“_Você será julgado amanhã. Só existe uma
maneira de sair vivo daqui. Alegar que és um escolhido do deus vermelho e que
nem mesmo a morte poderá detê-lo. E que se fores morto, retornarás da morte e
todos que estiverem presentes naquele momento também serão mortos antes que
Erius e Fabus sejam vistos juntos novamente nos céus.” _Disse o homem magro
e alto, com uma barbicha pontuda e negra que possuía um acentuado odor de óleos
aromáticos.
_Que
loucura é essa? Quem é você e quem é esse deus vermelho? Por acaso viestes até
mim zombar de minha situação? _Questionou Gamblior aproximando se das grades
para ver o homem que viera visita-lo.
O
estranho homem observou Gamblior sem expressar qualquer tipo de emoção em seu
rosto esquelético. Gamblior que sempre fora esbelto encontrava se magro, com as
veias e os ossos a lhe saltarem da pele branca. Seu cabelo, que outrora reluzia
como ouro, estava opaco e ressecado. Havia passado três meses desde que ele
fora capturado. Seu pai provavelmente já sabia de sua situação ao menos há um
mês e estava fazendo seis dias que Andivari partira atrás de um bruxo que
diziam ser o único que poderia provar sua inocência, pois acreditavam que o tal
bruxo era capaz de ver tanto o passado quanto o futuro.
_Não
importa quem eu sou. Saiba apenas que sou conhecido de seu pai e o deus
vermelho é o verdadeiro deus adorado por teus antepassados.
_Meu
pai? Ele virá em meu socorro? Ouvi rumores que os Stavianathos partiram em
direção a Hellin-Odel para guerrearem contra nosso povo.
_É
verdade. _Disse o homem acariciando a barbicha. Mas não se preocupe com isso.
Apenas lembre se do que falei. O estranho homem virou sob os calcanhares e saiu
depressa sem olhar para trás nem mesmo quando Gamblior gritou por ele.
Agora
Gamblior estava amarrado na estaca que ficava na praça central. Era de costume
os criminosos serem amarrados sob os fortes raios de Álax antes de um
julgamento. “Para clarear as ideias e não mentir.” Diziam. Mas a verdade era
que depois de ficarem horas sem sequer uma gota d’água muitos perdiam a razão.
Horas
passaram e Gamblior ficou inconsciente por um tempo indeterminado. Quando
acordou o céu estava rubro e a praça estava cheia. O rei estava presente
sentado sob uma cadeira acolchoada feita de veludo azul com bordas em linhas de
ouro. Ao seu lado estava um sacerdote de Bël-Teancun para condená-lo, uma
sacerdotisa de Iévine para defendê-lo.
Gamblior
não conseguia entender nada do que diziam. Sua mente estava em outro lugar...
Os balbucios de Durkan eram inteligíveis para ele. O rei parecia apenas se
agradar do desfecho do julgamento. Coçava a barba cinza enquanto olhava
Gamblior dependurado sobre o peso do próprio corpo amarrado a estaca. Por um
momento julgou ver Andivari na multidão tentando abrir passagem aos empurrões e
cotoveladas. Já não tinha mais forças quando entendeu que o julgamento
terminara. Homens fortes o seguraram pelos braços após o desamarrarem. Olhou ao
redor para toda aquela multidão em fúria. Gritando palavras de ódio contra ele.
Gamblior lembrou-se de Kathrina. De sua beleza e de sua voz. Sua mente viajou
no tempo e lembrou se de quando se beijaram pela primeira vez. Caia uma forte
chuva e os dois correram para debaixo de uma sacada em uma das muitas
existentes na capital de Hellin-Odel. Os dois reis tinham negócios a tratar e o
jovem Gamblior ficara incumbido de acompanhar a jovem princesa. Os dois já
estavam bastante molhados após terem corrido pelas ruelas da cidade debaixo da
chuva para fugirem dos guardas encarregados de vigiarem os dois. Quando ficaram
finalmente a sós, Gamblior mais que depressa a apertou em seus braços de
encontro à parede e a beijou. Ela não demonstrou relutância e com a mesma
voracidade retribuiu lhe o beijo. Os lábios de Kathrina tinham sabor de maças
embebecidas no mel. Desde aquele momento Gamblior se apaixonara e sempre acompanhava
o pai nas viagens a Stavianath. Mas agora Kathrina estava morta. Brutalmente
assassinada. Na flor da sua juventude. E a multidão gritava que ele era o
culpado. Uma parte de seu coração também o condenava. _Eu sou culpado! _Pensava. _Não
devia ter desistido dela. Devia ter ficado e protegido ela. Ela me amava
também. Mas agora nada importava.
Quando
Gamblior viu o carrasco se aproximar arrastando uma espada bastarda na pedra cinzenta ao
chão, sua mente retornou ao presente. Quis gritar, mas não tinha forças.
Lágrimas escorreram em seu rosto. Lembrou se das palavras do estranho visitante
da noite anterior.
_ Nem mesmo a morte... Vacilou nas
palavras. Não tinha forças para dizê-las. Quando abaixaram sua cabeça sabia que
o fim estava próximo. Tentou imaginar Kathrina o esperando em um belo jardim.
Sua garganta estava seca demais. Sentia muita sede e lhe faltava ar. Por um
momento viu pessoas sendo banhadas com sangue. Então tudo se escureceu e nada
não existia mais.