segunda-feira, 24 de agosto de 2015

De volta ao lar

A cidade estava eufórica com a chegada do príncipe Gamblior. Muitos foram os boatos de sua morte, mas a presença do príncipe onipotente em cima de seu garanhão branco afastava qualquer duvida de que a noticia de sua morte havia sido uma cruel artimanha inimiga para enfraquecer a moral dos soldados de todas as cidades do reino de Hellin- Odel.  Soldados que prontamente partiram em auxílio do príncipe.
Mas os deuses estavam do lado do reino. A batalha ao sopé da cordilheira havia sido vencida e Cron e seus soldados haviam sucumbido. A capital de Stavianath, Shadarph, havia sido destruída e as demais cidades estavam dominadas. Graças ao auxílio do rei Keiran Dehildren, Senhor de Markden, a vitória havia sido conquistada.
_Eles ameaçaram nosso reino e nosso rei, mas o jovem Gamblior conquistou-nos uma vitória e nem mesmo a “morte” pode vencê-lo. –Falavam nas tavernas e ruas de Hellin-Odel.
_Lembram de como nos ameaçaram os homens de Stavianath?
_E aquelas mentiras de que nosso príncipe havia assassinado a princesa Kathrina?
 _Tolices. Eram puras tolices daquele povo mesquinho. Mas nosso príncipe vez justiça. Sim, ele fez. Fez cada um pagar pelas calúnias e difamações que fizeram com seu nome. Agora ele está conosco.
_Vida longa ao príncipe Gamblior. –Todos gritavam enquanto o príncipe passava.
Gamblior estava diferente. Mais corpulento apesar dos castigos das batalhas. Erguia-se prepotente em sua montaria branca. Exibia uma armadura negra com rebites de aço no peitoral e na ombreira. Apesar dos arranhões em seu braço, somente a cicatriz em seu rosto parecia significante. Um corte que descia da fronte passando sobre o olho esquerdo e indo acabar na orelha. Seus cabelos haviam crescido e cobriam parte da cicatriz, mas o seu olho direito assumira uma tonalidade vermelho-sangue. Quem via não sabia dizer se Gamblior ainda era capaz de enxergar com aquele olho.
O príncipe adentrara Hellindria, a cidade capital de Hellin-Odel junto com uma comitiva de duzentos homens, mas do lado de fora da cidade, entre a muralha e a praia, um enorme acampamento havia sido montado. Um exército de setenta mil homens estava espalhado pela praia, e nas colinas próximas da cidade. Navios ostentando bandeiras de Markden e de Hellin-Odel não paravam de chegar amontoados de guerreiros espólios de guerra adquiridos nas terras de Stavianath.
Hellindria havia sido construída ao sopé de uma imensa montanha intransponível que protegia toda ala leste da cidade. Ao redor da cidade haviam sido construídos quatro muros que separavam o povo por classes. Todos em formato de meia lua, começando em uma ponta da montanha e terminado na outra ponta.
 Mas todos os cidadãos, independente da classe passavam pela avenida principal que se estendia do portão principal, passando por mais três portões e indo até as portas do palácio real.
A maioria dos soldados que o acompanhavam se dispersaram ao chegarem ao terceiro portão. Somente um grupo de vinte e três homens continuou a cavalgada ao lado de Gamblior quando estes transpuseram o quarto e ultimo portão.  A região nobre de Hellindria era ainda mais esplendorosa que as demais. Estatuas de Tolnd e ouro enfeitava quase todas as esquinas. Arvores com folhas vermelhas e amarelas coloriam o ambiente ao mesmo tempo em que deixava o ar com um cheiro agradável.
No final da avenida, o palácio erguia suas torres aos céus. Todo pintado de branco, às vezes se mesclava com o branco da neve que cobria a montanha atrás dele. Diante da imensa porta escarlate que fazia contraste com as paredes brancas do palácio, Fandron aguardava a chegada do filho. Quando Gamblior ficou diante de Fandron, o rei olhou seu filho com um olhar desconfiado.
_Não vai abraçar seu filho, pai? –Disse Gamblior descendo de sua montaria.
_Claro que...vou. Meu ... filho.  Fandron abraçou o filho e o beijou na face, visivelmente incomodado.
_Que bom que estais vivo, meu filho. Venha, temos muito que conversar.
Os dois adentraram o castelo seguido de alguns poucos homens que os acompanharam até o salão principal e depois os deixaram a sós nos aposentos do rei.
Enquanto caminhavam lado a lado, o rei olhava para o filho analisando-o a cada passo. De súbito sua mente o levou ao passado. Quando sua esposa falecera ao dar a luz a... uma “aberração”... ao filho.
Gamblior havia nascido junto com um irmão gêmeo. Contudo o irmão era coligado a Gamblior pela cabeça. Siameses, “uma anomalia”, alguns diziam. O rei cuidou para que ninguém soubesse que o seu filho havia nascido deformado. Apenas o general Urizeh, que foi incumbido de matar a parteira antes que esta falasse algo a alguém, era que sabia.  Foi o general Urizeh que disse conhecer alguém que poderia ajudá-lo. E assim o rei Fandron conheceu Lecain.
Lecain poderia separar os irmãos siameses, mas haveria um preço. Lecain iria criar um deles longe do castelo e da vista de todos. Ele deveria ser criado longe do pai, do irmão e da realeza. Ele seria criado para um propósito maior e quando chegasse à hora o rei deveria aceitá-lo como o verdadeiro e legitimo herdeiro do reino. E este escolhido conquistaria todos os reinos.
_E o que será do outro filho? O que for criado comigo? –Perguntou Fandron ao estranho homem que estava diante dele. 


_ Não se preocupe com isso agora. Apenas cuide dele e o ame como um pai deve amar um filho. Mas quando o outro retornar será melhor amá-lo da mesma maneira. –Disse Lecain a Fandron naquela longínqua noite.
Quando o rei consentiu Lecain levou as crianças unidas pelo crânio e após uma semana retornou com um garoto saudável nos braços. Ele possuía a cabeça enfaixada e Lecain o visitava periodicamente durante um ano. Quando Fandron fazia menção sobre o outro filho Lecain apenas dizia.
_Este é seu filho. Ame e desfrute do tempo que vocês puderem compartilhar.
Aquelas palavras sempre deixavam Fandron amedrontado. E quando ele olhava a criança no berço, tão perfeita, tão bela, Fandron também tinha medo. Tinha medo de perdê-la. Ele abraçava a criança amorosamente e a segurava protegendo-lhe a cabeça nos braços. Não faltou amor àquela criança.  Mas aquela criança estava no passado. O homem que caminhava ao seu lado e o chamava de pai era um estranho. Eles poderiam ser fisicamente semelhantes, mas não era o mesmo. Aquele olhar não era de Gamblior e a cicatriz no rosto só piorava a aparência. Mas esse Gamblior fazia questão de exibir cicatrizes. Nos braços e pernas havia cicatrizes espalhadas. Cicatrizes antigas e cicatrizes recentes.
_Cicatrizes demais para um príncipe. –Pensava Fandron. _Seja como for, este também é meu filho. Tenho que amá-lo como amava o outro.


Os dois caminharam em silencio lado a lado e em silencio permaneceram durante o resto do dia.