quarta-feira, 29 de abril de 2015

Devoradores de homens.

Keiran Dehildren acordou cedo naquela manhã nublada. Uma fina chuva caía lá fora. Ao olhar pela janela da torre podia ver uma imensidão de telhados molhados pela chuva. Algumas copas de imensas árvores às vezes sobressaíam entre os telhados.
 Naquela parte do reino não se via as casas construídas com entalhes de madeira maciça sobreposta e cobertas com vegetação como era comum de se ver no subúrbio de Anarkden. Lavou o rosto em um recipiente de prata contendo água morna e em seguida vestiu seu gibão roxo e sua capa de veludo negro. Olhou para cama e ao ver Isilda se contorcer entre os lençóis de seda sentiu uma imensa vontade de despir-se novamente e se aconchegar entre as pernas dela. Lutando contra a tentação, saiu em silêncio fechando a porta e desceu as escadas em direção ao salão principal sem sequer dar atenção aos dois guardas que estavam parados ao lado da porta.
O salão principal era amplo e de paredes circunflexas, iluminado por tochas em vários cantos. Diante de uma imensa mesa de carvalho maciço encontrava se o general Obadian Teron onipotente com sua armadura negra e seu manto vermelho sangue. Apesar da idade, Teron se erguia com vigor juvenil. O peso de sua armadura completa não parecia incomodá-lo. Sua calvície salpicada por alguns fios de cabelos amarelos dava lhe um aspecto amargurado e severo. Diziam que outrora seus cabelos tinham sido vermelhos e volumosos. Mas aquela havia sido outra época.
_Vossa Alteza.
_Vamos logo dar cabo desse assunto general. Não quero que minha esposa acorde e queira vir conosco.
_Como quiser Vossa Alteza.
_Onde está o comandante Sinclery? Ele não virá conosco?
_Não senhor. Ele não poderá vir conosco. O marquês Éber relatou que uma de suas fazendas havia sido saqueada e seus servos haviam sido mortos. Enviei o próprio Sinclery para cuidar desse assunto e trazer os culpados à justiça. –Explicava Obadian enquanto caminhavam para o pátio.
_Fez bem general, fez bem. O marquês Éber é um homem honesto e honrado. Temos que mostrar que cuidamos de nossos bons cidadãos.

O pátio do castelo possuía uma extensão de calcário cinza que o cruzava da porta do palácio até ao portão de ferro que dava acesso a avenida principal de Anarkden. Ao redor, de ambos os lados, plantas exóticas criavam formas e desenhos coloridos em um belo jardim. As plantas exibiam suas cores vivas como nunca. Pareciam agradecidas pelas gotículas de água do chuvisco que caia teimosamente naquele dia.
Quando chegaram à rua, uma carruagem pintada de vermelha, com madeira envernizada e com o símbolo real de Keiran entalhado na porta estava aguardando. Quatro cavalos negros estavam incumbidos de puxar a carruagem. Duas lanças de soldados cuidavam da proteção do rei. Uma na frente com dez homens montados e uma atrás com nove homens. O general Teron ia junto ao rei dentro da carruagem. Logo a carruagem estava em movimento. Seria uma longa viagem e o guia estimava que eles chegassem à oitava hora do período de Álax. O céu provavelmente estaria escuro.
 Dentro da carruagem um harpista cantarolava enquanto dedilhava uma canção calma em sua harpa dourada. O rei parecia não ter interesse pela música e isto deixou o harpista com uma cara besta e um sorriso sem graça na face. Seu nome era Devany Aileeny, e era conhecida como “Devany voz das harpas”. O general Teron estava achando a música tediosa e imprópria, pois a letra falava um casal apaixonado em uma tarde iluminada, mas, como o rei parecia não se importar com a canção, permaneceu calado.
Horas mais tarde, quando a carruagem já atravessava a estrada da mata, o rei Keiran quis saber:
_Explique-me general, –Falou Keiran enquanto a carruagem seguia seu caminho. Como isto tudo ocorreu. O que realmente aconteceu aos Hildebrans?
_Meu senhor, tudo aconteceu muito rápido. Como os Stavianathos eram nossos aliados, não vimos necessidade de manter homens armados para cuidarem do corte das árvores. Foi quando um sobrevivente, o filho mais jovem dos Hildebrans veio até nós. O pequeno jovem nos relatou o massacre que sua família havia sofrido. Suas irmãs ainda estavam sendo estupradas quando ele fugiu. Infelizmente ele possuía uma ferida no abdômen e veio a falecer assim que nos relatou o ocorrido. O seu ultimo desejo foi que sua família fosse vingada. Desejo que eu e meus homens prontamente nos propusemos a realizar. 
_É realmente uma triste história, entretanto uma história difícil de acreditar. Não vejo motivos para os Stavianathos nos atacarem... Talvez o garoto tenha confundido os....
Abruptamente o rei foi interrompido por um estrondoso rugido de várias vociferações ferozes que ecoaram por toda floresta. Os soldados lutavam para controlar os cavalos que escoiceavam em pânico. Dentro da carruagem O rei estava atônito. O harpista havia deixado seu instrumento cair e estava branco como neve. Tremia e choramingava feito uma criança. Pela força do hábito, Obadian Teron levou sua mão até o cabo da espada, mas, seus olhos estavam arregalados.
_Que maldição foi essa? _ Quis saber o rei tentando falar sem tremor na voz embargada.
O general Teron sacou a espada e olhou de relance através da cortina da janela da carruagem. O rei olhou pela outra janela e viu seus soldados se reunindo ao redor da carruagem com certa dificuldade para controlar seus cavalos. Olhou mais adiante, para a floresta e viu algo aterrador. Olhos. Olhos amarelos e raivosos na floresta. Logo o arbusto começou a se mexer e os olhos apareceram em um rosto com focinho negro e uma enorme boca com mandíbulas denteadas e uma juba negra por trás desta face aterrorizante. Um corpo forte e grande se revelou. Possuía uma fina pelagem variando do vermelho amarelado ao marrom escuro e aproximadamente dois metros e dez de altura. O rosto macabro pareceu sorrir e um rugido se sobressaiu dentre os outros. A criatura avançou velozmente, munida de apenas um tacape de madeira nas mãos e logo uma dezena de criaturas semelhantes a seguiam.

O rei Keiran caiu para traz apavorado. O que se seguiu foi uma onda de gritarias, rugidos e relincho de cavalos apavorados. A carruagem balançava a cada pancada que recebia de corpos sendo jogados e despedaçados. Correu para frente da carruagem para ver porque esta não se movia e viu que os cavalos tiveram suas pernas arrancadas. O cocheiro estava caído entre eles sem a cabeça. Viu um soldado galopar para longe esperançoso, mas o mesmo foi derrubado de sua montaria por uma criatura que caíra sobre ele surgindo do alto de uma arvore. Até mesmo a montaria foi abatida por um tiro de flecha certeiro saído de um arco rustico que a criatura utilizou enquanto ainda enforcava o dono da montaria com uma cauda forte de ponta peluda. Em seguida a criatura arrancou o rosto do soldado com uma mordida que estraçalhou os ossos da face deixando uma pasta vermelha escorrer pela cabeça junto com um olho que a criatura logo pegou e mastigou como se fosse uma ameixa.
As pernas de Keiran vacilaram e ele desmontou-se no chão da carruagem. A gritaria durou cerca de cinco minutos. Mas tarde restavam apenas alguns gemidos. O harpista gritara desesperadamente no inicio, mas agora se limitava a chorar copiosamente.
Logo ouviram passos se aproximando da carruagem.
_“toc, toc ,toc.” -Imitou o bater na porta da carruagem uma voz gutural e de entonação  sarcástica. _Venham jantar conosco. Vamos, saiam. Ou preferem que nós entremos?
_SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine SantaIévine..... – repetia sem para o harpista que se encontrava encostado na parede dos fundos da carruagem.
Um par de braços fortes e com mãos com garras negras e brilhantes atravessaram a parede e agarraram o harpista pela cintura e o puxou através da parede de madeira que se quebrou como se fosse gravetos. Os gritos do harpista se tornaram novamente desesperados.
_Teron se ergueu e saiu da carruagem.
_Aonde você vai? –Perguntou o rei. _Volte. Eles vão devorá-lo.
O rei Keiran se recolheu no chão da carruagem. Sua mente procurava por sua coragem, por sua bravura, mas não encontrava. Estava imobilizado de pavor.
_Então temos um acordo? Perguntou a voz gutural.
_Sim. –respondeu Teron.
_Bom. Muito bom.  Devoraremos os homens e os cavalos e ficaremos com as armas de ferro. Da mesma forma que fizemos com os outros, mas pouparemos o seu rei.
O rei Keiran que estava até então ouvindo a conversa teve coragem para sair da carruagem ao ouvir que seria poupado. Desceu os degraus da carruagem, trêmulo e quase voltou para dentro quando viu os soldados sendo devorados por um bando de criaturas que lembravam os silberianos dos quais havia ouvido falar no passado.
_O que está acontecendo Teron? Conhece esses... esses... silberianos?
_O seu rei nos ofende humano. –rugiu a criatura que estava diante do general Teron. A criatura segurava o harpista pelo braço e quando olhou para o rei Keiran arrancou o braço do harpista e começou a morder e chupá-lo os ossos como se fosse coxa assada de alguma ave. 
_Não somos silberianos humano tolo. Não somos fracos. Somos Silbetherons, ou silberons, como os ignorantes costumam dizer.
_Não importa o que sejam. –Falou o rei aflito ao ver o harpista desfalecer no chão. _Apenas me poupem como você havia dito.
_Humano tolo. Eu disse que vamos poupa-lo, sim. Mas pouparemos seu corpo. Não sua vida.
Com um golpe rápido a criatura enfiou as garras no peito de Keiran.
Keiran ainda teve tempo de ver o próprio coração pulsar na mão da criatura antes de cair sem vida.
Obadian Teron apenas desviou o olhar quando o sangue transbordou do peito vermelho do rei caído.
_Leve o seu cadáver de rei aonde quiser. E ponha a culpa em quem quiser. -Dizia a criatura enquanto acabava de mastigar o braço do harpista. _Mas não se esqueça de tua palavra humano. Iremos exigir trinta jovens humanos, toda vez que os olhos da deusa Iévine estiverem sobre vocês, como vocês costumam dizer. Mas sugiro que em vez de Iévine, quando olharem pro céu e virem as duas luas juntas, lembrem-se de meus olhos e de nosso trato. Nós preferimos a carne de fêmeas, mas esteja à vontade para escolherem seus filhotes. Apenas entreguem no local combinado, senão irei pessoalmente devorar você, sua família e todo seu povo.
Obadian Teron recolheu o corpo do rei e começou a caminhar o percurso que retornava a Anarkden. A jornada seria longa e cansativa. E Obadian Teron tinha uma história para contar.