quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Condenado antes de ser julgado.

Enquanto Gamblior era arrastado pelos dois guardas de faces severas e armaduras de metal polido que refletiam o brilho de Álax em seus olhos naquela manhã clara, tentava em vão caminhar ereto, com a força de seus próprios pés. Contudo a força de seu corpo já o havia deixado há dias. Andivari e os seus companheiros não regressaram com as provas de sua inocência.
_Amável Andivari, eu sei que tinha boas intenções, mas para esse povo, eu já fui condenado mesmo antes de ser julgado. _Pensava Gamblior enquanto era arrastado até a praça onde seria julgado. Enquanto era arrastado pelas ruas pavimentadas com blocos de pedras acinzentadas pensava no estranho visitante que recebera em sua cela duas noites atrás.
“_Você será julgado amanhã. Só existe uma maneira de sair vivo daqui. Alegar que és um escolhido do deus vermelho e que nem mesmo a morte poderá detê-lo. E que se fores morto, retornarás da morte e todos que estiverem presentes naquele momento também serão mortos antes que Erius e Fabus sejam vistos juntos novamente nos céus.” _Disse o homem magro e alto, com uma barbicha pontuda e negra que possuía um acentuado odor de óleos aromáticos.
_Que loucura é essa? Quem é você e quem é esse deus vermelho? Por acaso viestes até mim zombar de minha situação? _Questionou Gamblior aproximando se das grades para ver o homem que viera visita-lo.
O estranho homem observou Gamblior sem expressar qualquer tipo de emoção em seu rosto esquelético. Gamblior que sempre fora esbelto encontrava se magro, com as veias e os ossos a lhe saltarem da pele branca. Seu cabelo, que outrora reluzia como ouro, estava opaco e ressecado. Havia passado três meses desde que ele fora capturado. Seu pai provavelmente já sabia de sua situação ao menos há um mês e estava fazendo seis dias que Andivari partira atrás de um bruxo que diziam ser o único que poderia provar sua inocência, pois acreditavam que o tal bruxo era capaz de ver tanto o passado quanto o futuro.
_Não importa quem eu sou. Saiba apenas que sou conhecido de seu pai e o deus vermelho é o verdadeiro deus adorado por teus antepassados.
_Meu pai? Ele virá em meu socorro? Ouvi rumores que os Stavianathos partiram em direção a Hellin-Odel para guerrearem contra nosso povo.
_É verdade. _Disse o homem acariciando a barbicha. Mas não se preocupe com isso. Apenas lembre se do que falei. O estranho homem virou sob os calcanhares e saiu depressa sem olhar para trás nem mesmo quando Gamblior gritou por ele.
Agora Gamblior estava amarrado na estaca que ficava na praça central. Era de costume os criminosos serem amarrados sob os fortes raios de Álax antes de um julgamento. “Para clarear as ideias e não mentir.” Diziam. Mas a verdade era que depois de ficarem horas sem sequer uma gota d’água muitos perdiam a razão.
Horas passaram e Gamblior ficou inconsciente por um tempo indeterminado. Quando acordou o céu estava rubro e a praça estava cheia. O rei estava presente sentado sob uma cadeira acolchoada feita de veludo azul com bordas em linhas de ouro. Ao seu lado estava um sacerdote de Bël-Teancun para condená-lo, uma sacerdotisa de Iévine para defendê-lo.
Gamblior não conseguia entender nada do que diziam. Sua mente estava em outro lugar... Os balbucios de Durkan eram inteligíveis para ele. O rei parecia apenas se agradar do desfecho do julgamento. Coçava a barba cinza enquanto olhava Gamblior dependurado sobre o peso do próprio corpo amarrado a estaca. Por um momento julgou ver Andivari na multidão tentando abrir passagem aos empurrões e cotoveladas. Já não tinha mais forças quando entendeu que o julgamento terminara. Homens fortes o seguraram pelos braços após o desamarrarem. Olhou ao redor para toda aquela multidão em fúria. Gritando palavras de ódio contra ele. Gamblior lembrou-se de Kathrina. De sua beleza e de sua voz. Sua mente viajou no tempo e lembrou se de quando se beijaram pela primeira vez. Caia uma forte chuva e os dois correram para debaixo de uma sacada em uma das muitas existentes na capital de Hellin-Odel. Os dois reis tinham negócios a tratar e o jovem Gamblior ficara incumbido de acompanhar a jovem princesa. Os dois já estavam bastante molhados após terem corrido pelas ruelas da cidade debaixo da chuva para fugirem dos guardas encarregados de vigiarem os dois. Quando ficaram finalmente a sós, Gamblior mais que depressa a apertou em seus braços de encontro à parede e a beijou. Ela não demonstrou relutância e com a mesma voracidade retribuiu lhe o beijo. Os lábios de Kathrina tinham sabor de maças embebecidas no mel. Desde aquele momento Gamblior se apaixonara e sempre acompanhava o pai nas viagens a Stavianath. Mas agora Kathrina estava morta. Brutalmente assassinada. Na flor da sua juventude. E a multidão gritava que ele era o culpado. Uma parte de seu coração também o condenava. _Eu sou culpado! _Pensava. _Não devia ter desistido dela. Devia ter ficado e protegido ela. Ela me amava também. Mas agora nada importava.
Quando Gamblior viu o carrasco se aproximar arrastando uma espada bastarda  na pedra cinzenta ao chão, sua mente retornou ao presente. Quis gritar, mas não tinha forças. Lágrimas escorreram em seu rosto. Lembrou se das palavras do estranho visitante da noite anterior. 

_ Nem mesmo a morte... Vacilou nas palavras. Não tinha forças para dizê-las. Quando abaixaram sua cabeça sabia que o fim estava próximo. Tentou imaginar Kathrina o esperando em um belo jardim. Sua garganta estava seca demais. Sentia muita sede e lhe faltava ar. Por um momento viu pessoas sendo banhadas com sangue. Então tudo se escureceu e nada não existia mais.